Festival Godard

O Lisbon & Estoril Film Festival anuncia 60 anos de filmes de Jean-Luc Godard. E um simpósio internacional para discutir e reflectir sobre essa monumental obra. Programa carregadíssimo, tudo se passa em dez dias.

Foto

A edição deste ano do Lisbon & Estoril Film Festival é um festival Godard. Anuncia-se a obra toda, e mais um simpósio internacional para discutir e reflectir sobre essa monumental obra. Programa carregadíssimo: a obra de Godard são 60 anos de filmes feitos a um ritmo produtivo impressionante, que pode ter abrandado em alguns momentos mas explodiu em múltiplas direcções a partir do momento – anos 70 – em que começou a experimentar o vídeo e a dar um novo sentido à ideia de produção “caseira”. Não apenas aqueles “clássicos” da produção vídeo de Godard, de Six Fois Deux nessa década de 70 às Histoire(s) du Cinéma na viragem de 80 para 90, de resto dois títulos fulcrais nesta obra, mas os incontáveis pequenos filmes em que Godard, de moto próprio ou respondendo a encomendas (até publicitárias, como na série de “anúncios Girbaud”), se foi exercitando e lançando objectos para o “cosmos” (como se dizia no Weekend), sem preocupações de seguir os trâmites habituais da estreia e carreira das longas-metragens “convencionais”. É quase precisa uma bússola para não perder o pé no mar godardiano: entre os filmes “normais” e estas “irregularidades”, contam-se mais de cem títulos.

Foto
Os nove dias do Lisbon & Estoril Film Festival (de 4 a 13) arriscam-se a ser poucos para a exibição de 60 anos de filmes LARRY ELLIS/EXPRESS/GETTY IMAGES

Os dez dias do festival (de 4 a 13) arriscam-se a ser poucos para a exibição disto tudo – aliás, a programação é, forçosamente, uma coisa non stop, com sessões em simultâneo ou a encavalitarem-se umas nas outras. Mesmo o espectador que queira ver tudo e tire nove dias para andar a entrar e sair de salas de cinema nunca conseguirá ver tudo. Ficará com fragmentos, pedaços, como se estivesse a fazer a sua operação de “montagem”. Por certo que a obra de Godard precisa de outro tempo de ingestão e digestão. Mas ele, adepto do fragmento e do pedaço, da montagem de recortes e parcelas, da parte a substituir o todo, talvez até aprecie uma correria assim – que se aproxima da experiência dos protagonistas de Bande à Part, quando percorrem ao sprint os corredores do Louvre a caminho de um novo recorde, 9 minutos e 43 segundos.

Essa, aliás, é uma das cenas mais “insolentes” de todo o Godard, cineasta cuja “insolência” e gosto provocador quase infantis são fáceis de esquecer acualmente. Se ele representa hoje um peso enorme e quase intimidatório (o que é “normal”: é o último gigante vivo, talvez apenas com a companhia de Jean-Marie Straub, apesar deste nunca ter tido a projecção popular, a aura de pop star, que Godard conseguiu mais ou menos deliberadamente), se ele é hoje auscultado quase mais como “filósofo” do que como cineasta ou artista (e por certo objecto do interesse e da análise de filósofos, sem aspas), é preciso não esquecer o enorme prazer, o enorme gozo, que os seus filmes deram e continuam a dar. E o texto que apetece escrever nesta ocasião é simples: uma lista. Uma lista meio ao acaso, de momentos “godardianos” que o autor destas linhas confunde com os seus momentos mais felizes e mais emocionantes em frente a um ecrã de cinema.

Assim, ao acaso: Belmondo e Jean Seberg enrolados na cama a citarem William Faulkner (“between grief and nothing…”) no Acossado; Belmondo, com Anna Karina ao lado, a atirar o carro descapotável para o mar, para provar que mesmo quando a estrada parece pré-determinada, se pode sempre escolher a berma (no Pedro, o Louco); a majestade de Fritz Lang no Desprezo, projectada sobre o azul do Mediterrâneo; o pianista do Weekend, que numa quinta entre tractores e estábulos disserta sobre Bach e os Rolling Stones; os travellings sobre o estúdio onde o Stones gravam Sympathy for the Devil em One Plus One; o rosto de Anna Karina, feita Falconetti, a mimar a Joana d’Arc de Dreyer (em Viver a sua Vida); o grande plano das mãos de Alain Delon e Domiziana Giordano em Nouvelle Vague; os heróis de Os Carabineiros debruçados sobre o ecrã para tentarem ver o resto da mulher semi-nua cuja imagem se projectava; o bailado de fuga, perseguição e acasalamento de Maruschka Detmers e Jacques Bonnaffé, ao som de Tom Waits, em Nome: Carmen; as imagens de Godard, ele próprio, em JLG/JLG à beira do lago gelado de Genebra, enquanto a banda de som traz a recordação de À Beira do Mar Azul ou de Johnny Guitar; o som do vento contra o microfone no Filme Socialismo; a casa jerrylewisiana de Tout va Bien; a barriga de Myriem Roussel em Eu Vos Saúdo Maria, e o noli mi tangere; o sobreposição do cadáver de Lenine ao cadáver de Ivan, o Terrível em Les Enfants Jouent à la Russie; a citação de Spengler (“começa agora o combate entre o dinheiro e o sangue”) sobre modernos edifícios berlinenses em Allemagne, Neuf Zéro; os planos dos telefones mudos em Puissance de la Parole; as velas que iluminam fugazmente as pinturas medievais em King Lear; a morte atropelada de Jacques Dutronc em Salve-se Quem Puder, tão parecida com a morte na estrada de Belmondo em O Acossado; as mesas de pequeno almoço filmadas em 3D em Adeus à Linguagem, e a melancolia do cão Roxy a sonhar com as ilhas Marquesas. E... batemos no limite de caracteres. Mas isto não parava. Godard, numa palavra: emoções.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários