A “expulsão” de um transviado

Foi uma relação atribulada, a de Mário Dionísio com o Partido Comunista, ao qual aderiu em 1945. Álvaro Cunhal quis apagar a mancha, mas a mágoa era irreparável.

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As posição teóricas, de ordem estético-ideológica, que Mário Dionísio tomou na polémica interna do neo-realismo não podiam estar desligadas de uma reflexão sobre a relação do intelectual e escritor com o Partido Comunista Português, a que aderiu em 1945, já que o compromisso com o partido implicava também a adesão a um programa estético-literário que colocava no centro a função política e social da arte. Em 1952, coincidindo com a eclosão dessa polémica interna, Mário Dionísio pediu a sua demissão. As razões que apresentou eram indulgentes e, sendo embora também de ordem prática, procuravam até algumas cauções teóricas: não abandonava a condição de “simpatizante”, mas as tarefas e o empenhamento exigidos ao militante não só não estava em condição de as poder cumprir como achava que o compromisso do artista e do escritor tinha de ser em primeiro lugar com a sua arte. Evidentemente, uma posição deste tipo era, em si mesma, um desvio do caminho (“desvio” e “caminho” são metáforas muito comuns no idiolecto do Partido Comunista, nesse tempo). E a repreensão por essa atitude desviante, acompanhada de abundantes argumentos para a corrigir (num longo discurso proveniente do sector intelectual do Partido), está documentada numa correspondência que Mário Dionísio manteve com o PCP, a seguir à sua saída. Essa documentação foi agora publicada pela primeira vez, em fac-simile, no catálogo da exposição Passageiro Clandestino. Mário Dioníso 100 anos, da qual António Pedro Pita é o director científico, em exibição até 26 de Fevereiro no Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira.

As consequências do seu acto temerário, pôde Mário Dionísio começar a medi-las, pouco depois, quando um “amigo” o avisou: “Nunca mais farás nada”. E em Novembro de 1952, como se não tivesse saído pelo seu pé da condição de militante, foi avisado de que o Secretariado do Partido tinha decidido expulsá-lo. Tal “expulsão” (sem efeitos práticos porque o “expulso” tinha saído voluntariamente) foi um acto de hostilidade que conheceu depois outros episódios. Mário Dionísio conta na sua Autobiografia que, durante um curso sobre pintura que realizou na Faculdade de Ciências de Lisboa, em 1953, um indivíduo começara a dizer para a restante plateia: “Um tipo bestial. È pena como se portou enquanto esteve preso. Meteu muita gente dentro." Ora Mário Dionísio nunca tinha sido preso.

Em 1960, o PCP reconhece a injustiça e o sectarismo com que alguns quadros intelectuais foram expulsos e faz alguns esforços de correcção (o historiador João Madeira refere-os numa comunicação que apresentou no Congresso sobre Mário Dionísio; é aliás essa comunicação que me ajuda nesta breve reconstituição). É então que Mário Dionísio recebe uma carta de Álvaro Cunhal, que começa assim: “Amigo: já não nos vemos há um par de anos." O tom amistoso e elegante mantém-se até ao fim da carta, movida pelo “desejo de conversar consigo”. Ao convite de Cunhal responde Mário Dionísio exprimindo uma mágoa nunca curada: “Nunca mais poderei esquecer a triste experiência pessoal, na qual me foi dado ver aquilo que nunca podia julgar possível deste lado: a intriga, a deslealdade, a mentira, a falta de carácter, a sofreguidão do prestigiozinho pessoal." E recusou o convite, rematando: “Não julgue que recebi com indiferença a carta amiga dum amigo” (as duas cartas também estão publicadas no catálogo já referido). Publicamente, Mário Dionísio nunca teve palavras tão duras para com o Partido a que pertencera e manteve-se até ao fim “simpatizante”, como tinha decidido logo nesse ano de 1952.

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