João

Como ele próprio brilhantemente arguiu, um médico culto é um médico melhor – e ele foi um insaciável leitor e aprendiz.

A notícia da morte de João Lobo Antunes não podia surpreender quem conhecia o prognóstico da disseminação metastásica que não poupara sequer o cérebro, o órgão a que dedicara a sua actividade cirúrgica mais apurada e a sua reflexão ética mais recente. De resto, o João não fizera segredo da sua situação clínica – comunicara-a a alguns amigos logo que se estabeleceu o diagnóstico e informara o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, a que presidia, da provável efemeridade da sua presença.

Não houve surpresa, pois, e até foi possível ganhar alguns meses de vida, brilhante e interventiva como sempre, através do recurso a medicação inovadora.

Todavia, o sentir é o de uma imensa perda e de uma dor moral agudíssima. Quando alguém nos morre, recomendam há muito os filósofos, devemos tentar divisar, apesar da velatura das lágrimas, a perda que experimentamos e os seus contornos reais. Sem conseguir enxergar em toda a extensão a falta que o João me (nos) faz, há evidências que logo se destacam. Assim:

O João era um professor universitário que aliava à sempre por todos reconhecida excelência como docente e investigador o feito de ter presidido à renovação total da neurocirurgia portuguesa, quiçá adormecida sobre os louros de Almeida Lima. Porém, longe de ser apenas um grande cirurgião, era um médico que proclamava valores e praticava virtudes éticas, unindo competência, compaixão e respeito numa tríade luminosa. De notar que a ele se deve o conceito de “compaixão ontológica”, tão fecundo em ética médica.

Foi também um estudioso da Bioética e um cultor da sua difusão e debate, particularmente na área que lhe era mais próxima, a da decisão em situações clínicas difíceis de avaliar, mormente em doentes em estado vegetativo ou até terminal. Os seus ensaios constituem contributos de consulta obrigatória, pela lucidez, pertinência e virtuosidade dos conteúdos. É neles, de resto, que se manifesta em todo o seu fulgor, contido e elegante embora, o seu talento de escritor a quem o médico forneceu a limpidez e acutilância do olhar, sem perturbar o processo da criação. Médico escritor ou escritor médico – a destrinça foi ele que a estabeleceu – mas grande escritor, sem dúvida.

Como ele próprio brilhantemente arguiu, um médico culto é um médico melhor – e ele foi um insaciável leitor e aprendiz. Nenhuma intervenção sua, e tantas foram, foi levada a cabo sem prévio e exaustivo estudo, mesmo que se tratasse de uma comunicação perante público reduzido e pouco exigente, ou de um regresso a um tema já por si abordado.

Médico cirurgião, professor universitário, ensaísta e escritor, elaborador de doutrina ética, cultor da beleza e da verdade, eis o retrato de um humanista e esse é o retrato que do João guardo. Pessoalmente, no íntimo do ser, guardo muito maior e mais preciosa imagem, a do amigo tarde descoberto mas tão íntimo que num telefonema ou numa carta podíamos, sem pejo, partilhar fraterna e confiadamente opiniões e preocupações acerca da natureza dos fins últimos.

Ao contrário dos que Fernando Pessoa descreveu, na sua belíssima “Para a memória de António Nobre”, como “órfãos de pai e mãe, perdidos de Deus, no meio da floresta, e chorando, chorando inutilmente…” sabemos que os que choramos a morte do João não o fazemos inutilmente, por ele nos deixar mais ricos, mais cultos, mais sabedores, mais compassivos. Ou, como ele afirmou em sessão pública, “quando choramos por alguém que nos é querido, choramos sobretudo por nós”.

Professor do Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto

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