Solidariedade: défice ou dívida?

É indispensável lutar por uma renovada ética de solidariedade, enquanto princípio ordenador para a realização do bem comum, tendo em atenção a “hipoteca social” que impende sobre qualquer bem não apenas público, como privado.

A solidariedade é proclamada “urbi et orbi”. Faz parte do léxico obrigatório e politicamente conveniente. O desgaste do seu uso retirou-lhe autenticidade e induziu o seu simulacro.

A solidariedade é um bem social de mérito. A dimensão solidária é, na sua essência, gregária. Feita de muitos “e”, dispensando os disjuntivos “ou”.  No limite, só frutifica quando se “dá” sem pedir contrapartida. Não se trata, pois, de uma relação biunívoca ou comutativa feita de uma parte e contraparte, mas de uma relação distributiva ou associativa construída numa só direcção. Num quase oximoro aritmético, multiplicando-se dividindo e somando-se pela diferença.

A solidariedade significa um movimento de inserção e um propósito de inclusão que, no seu conjunto, exprimem a ideia cívica de participação. Não é uma abstracção filosófica ou doutrinária. Exige o compromisso, envolve-se no contexto, concretiza-se na vivência e na plenitude do carácter e da compreensão do outro. São Tomás de Aquino chamava-lhe “amizade civil”.

A solidariedade é um valor moral e não uma simples tecnicalidade. Solidariedade como expressão de vida livre em sociedade e não como uma norma exterior ou imposta. Solidariedade fundamentada em princípios inalienáveis de dignidade da pessoa. Solidariedade praticada como um estímulo activo e não como uma dependência estigmática. Solidariedade como referência de exemplaridade geracional.

A sociedade confronta-se com novas e persistentes questões sociais e antropológicas. Na família, na empresa, nas comunidades, nas relações entre as pessoas. As tecnologias e as comunicações revolucionam os padrões de vida, a globalização altera os centros de decisão e fragmenta o processo produtivo.

Por outro lado, acentua-se o carácter dual, bipolar e indutor de fragmentação social. Passou-se de uma segmentação em que a pobreza assumia um carácter mais monetário e persistente, para uma sociedade de acrescidas fragilidades, vulnerabilidades e exclusões, com crescentes franjas das populações a sofrerem o estigma de estarem fora do sistema social.

A “cultura da pobreza” é a da não participação e da não integração, motivadas pela solidão e isolamento, por razões educacionais, pela ruptura urbanística, pelo desemprego persistente, pela precariedade, pela exiguidade do saber, pelo aparecimento de novas doenças, pela omissão ou diluição das responsabilidades familiares e geracionais.

Dizia Gabriel Garcia Márquez: “É isso que eu sou: solidão e solidariedade”. Ou ainda de uma forma expressiva: “Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se”. Para alguém que não conhecemos.

Há, também, que diferenciar a solidariedade nos acontecimentos e a solidariedade nos riscos. A primeira é casuística, curta, ainda que solícita. Existe enquanto o acontecimento subsiste. A segunda é duradoura, preventiva, acolhedora. Persiste independentemente do acontecimento.

A solidariedade também não é uma posição, um momento. É um caminho, uma relação, não necessariamente de proximidade geográfica ou física, mas de vontade e entreajuda. Para a solidariedade a noção da relação é mais a do próximo, ainda que distante do que do vizinho, ainda que perto.

O défice de solidariedade é enorme, mas a dívida da solidariedade não se contabiliza ou exige. É indispensável lutar por uma renovada ética de solidariedade, enquanto princípio ordenador para a realização do bem comum, tendo em atenção a “hipoteca social” que impende sobre qualquer bem não apenas público, como privado.

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