Os países não se demoram nas encruzilhadas

Sendo este o regime político, qual será a melhor estratégia por parte das forças democráticas para levar a cabo as lutas políticas que travem a deriva autoritária e reforcem a democracia?

O golpe parlamentar-judicial que ocorreu no Brasil vai ter repercussões na vida social e política do país difíceis de prever, ainda que, na versão oficial e na dos EUA, tudo tenha corrido dentro da normalidade democrática. Mas são também de prever repercussões internacionais porque o Brasil assumiu nos últimos anos uma política internacional relativamente autónoma, tanto no plano regional como no plano mundial, através da participação na construção do bloco dos BRICS [acrónimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. Houve golpe porque não foi provado o crime de responsabilidade, o único facto que num regime presidencial podia justificar o impedimento. Houve uma interrupção constitucional, mas a sua natureza é difícil de tipificar. Não houve declaração de guerra, não foi declarado o estado de sítio ou o estado de emergência. Foi uma interrupção anómala que resultou do inchamento excessivo de um dos órgãos de soberania, o poder legislativo, com o consentimento e até a colaboração ativa do único órgão de soberania que podia travar a interrupção constitucional, o poder judicial.

Visto à luz dos influentes debates dos anos vinte do século passado, o que se passou no Brasil foi o triunfo de Carl Schmitt (primazia do soberano) sobre Hans Kelsen (controlo judicial da Constituição). E o curioso é que essa vitória foi assegurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao consentir, por acção ou omissão, nas anomalias constitucionais e interpretações bizarras que se foram acumulando ao longo do processo. Por isso, rigorosamente, o golpe foi parlamentar-judicial e não apenas parlamentar. Qual foi no caso o poder soberano? Não foi certamente o povo brasileiro que ainda pouco tempo antes tinha elegido a presidente. Foi um soberano de várias cabeças constituído pela maioria parlamentar, os média, o capital financeiro e as elites capitalistas a ele ligadas, e os EUA, cuja intervenção está por agora pouco documentada mas que se manifestou por várias formas, a mais evidente das quais foi a visita de John Kerry ao Brasil em 5 de Agosto e a declaração à imprensa junto com José Serra (que na altura nem sequer era um ministro com plenos poderes por o impeachment estar ainda em curso) para salientar as boas condições que se abriam ao fortalecimento das relações entre os dois países.

Qual a natureza do regime político do Brasil depois do golpe parlamentar-judicial? É um regime que se define mais facilmente pela negativa do que pela positiva. Não é uma ditadura como a que existiu até 1985; tão pouco é uma democracia como a que existiu até ao golpe; não é uma ditabranda ou democradura, designações em voga para caracterizar os regimes de transição da ditadura para a democracia. Trata-se de um regime nitidamente transicional anómalo e sem direção definida para onde irá transitar. Em termos de teoria de sistemas, é um sistema político altamente desequilibrado, numa situação de bifurcação: a mais pequena alteração pode causar grandes mudanças sem que o sentido destas seja previsível. Pode resultar em mais democracia ou em menos democracia, mas, em qualquer caso, é de prever que ocorra com alguma turbulência social e política. O desequilíbrio resultou da rutura institucional forçada pelo sector maioritário das elites económicas e políticas que sentiu ameaçado o regime de acumulação capitalista e a lógica social do senhor/escravo (no Brasil, a lógica da separação entre a casa grande e a senzala) que legitima muitas das hierarquias sociais das sociedades capitalistas com forte componente oligárquica de raiz colonial. Foi uma rutura que não visou alterar o sistema político (este mostrou-se, aliás, muito funcional), mas apenas alterar um resultado eleitoral e repor o estado de coisas que vigorava antes da intrusão do PT.

O sistema judicial: dois pesos e duas medidas. O papel central do sistema judiciário nos equilíbrios e desequilíbrios do período pós-1985 deve ser analisado com detalhe. A operação lava-jato apresenta grandes ambivalências. Se, por um lado, fez com que grandes empresários, políticos e empreiteiros fossem processados criminalmente, rompendo, de alguma maneira, com o sentimento de impunidade, por outro, a sua grande base de sustentação é o envolvimento de personagens da esquerda brasileira, em especial do PT. Isso fica evidente quando comparamos a operação lava-jato com a operação Satiagraha, que investigava a corrupção e o branqueamento de capitais, envolvendo, principalmente, o banqueiro Daniel Dantas com as privatizações do Governo Fernando Henrique Cardoso. Foi comandada pelo Juiz Federal Fausto de Sanctis e pelo Delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz. Foi grande a reação do STF a essa operação e bem diferente da atual: o Delegado Protógenes Queiroz foi condenado criminalmente, e expulso da Polícia Federal; o Juiz Federal Fausto de Sanctis sofreu perseguição do então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, que oficiou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do qual também era Presidente, para apurar a conduta do juiz. Foi um grande embate da Justiça Federal de primeira instância com o STF. Por seu turno, a prisão do banqueiro Daniel Dantas, que chegou a ser algemado, esteve na origem da Súmula Vinculante 11 do STF: “Só é lícito o uso de algemas.... em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia”.

Talvez isto baste para concluir que no Brasil (e certamente não é caso único) o êxito da justiça criminal contra ricos e poderosos parece estar fortemente relacionado com a orientação político-partidária dos investigados. Mas há mais. A nomeação do ex-presidente Lula como ministro levou o Juiz Sérgio Moro a cometer um dos atos mais flagrantemente ilegais da justiça brasileira contemporânea: permitir a divulgação do áudio entre a Presidente Dilma e o ex-presidente Lula, quando já sabia que não era competente para o processamento. A propósito, o facto de a Presidente Dilma ter nomeado Lula da Silva como ministro, ainda que tivesse por motivação exclusiva a alteração de foro competente para julgamento, não constitui por si só uma obstrução da justiça. Com efeito, na época em que era Presidente, Fernando Henrique Cardoso (FHC) atribuiu o status de Ministro ao então Advogado Geral da União (AGU), Gilmar Mendes, com um objetivo semelhante. No final da década de 90 do século passado e início do século XXI, por conta das privatizações e elevação da carga tributária, vários juízes federais começaram a proferir liminares e a interferir no programa económico do governo FHC. O Ministro Gilmar Mendes era então Advogado Geral da União e criticava fortemente a postura dos juízes federais. Foram várias as acções de improbidade contra o governo FHC e o próprio Gilmar Mendes. Perante o perigo de Gilmar Mendes ter de responder a processos em primeira instância, foi editada a Medida Provisória n. 2.049-22, de 28 de agosto de 2000, que lhe garantiu o foro privilegiado e assim o preservou. E na altura não houve nenhum tipo de questionamento, nenhuma alegação de inconstitucionalidade ou “criminalização” do presidente FHC por obstrução da Justiça.

A ideia de que na justiça brasileira há dois pesos e duas medidas parece confirmada. Como vimos atrás, têm ocorrido fracturas no interior do sistema judicial e, dependendo das circunstâncias, elas podem ser um contributo importante para re-credibilizar a democracia brasileira. No momento em que o sistema judicial parece apostado em criminalizar a todo custo uma personalidade com a estatura nacional e internacional do ex-presidente Lula, talvez seja bom lembrar os juízes que na época do governo FHC foram objeto de perseguição quando intervinham com liminares contra a política económica neoliberal adotada pelo governo. A política económica que vem aí não será menos dura e vem possuída de um forte impulso revanchista.

Com o golpe parlamentar-judicial o regime político brasileiro deixou de ser uma democracia de baixa intensidade (eram bem conhecidos os limites do sistema político e do sistema eleitoral, em particular, para refletir a vontade das maiorias sem manipulação por parte dos média e do financiamento das campanhas eleitorais) para passar a ser uma democracia de baixíssima intensidade (maior distância entre o sistema político e os cidadãos, maior agressividade dos poderes fáticos, menos confiança na intervenção moderadora dos tribunais). Sendo este o regime político, qual será a melhor estratégia por parte das forças democráticas para levar a cabo as lutas políticas que travem a deriva autoritária e reforcem a democracia?

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