Depois de Mossul

Em Mossul não se joga apenas o destino do Daesh, mas sobretudo o futuro do Iraque.

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Decidirá a batalha de Mossul o destino do jihadismo e o futuro do Médio Oriente? Anuncia-se uma batalha que poderá durar meses, sobre a qual se traçam cenários de pesadelo e em que o mais importante será — sem paradoxo — o que virá depois. São duas batalhas entrelaçadas e inseparáveis, a militar e a política. No Iraque o político é sempre mais complicado do que o militar. Na primeira batalha joga-se o destino do Daesh (Estado Islâmico); no day after, joga-se o Iraque.

Para lá das minas com que os jihadistas armadilharam Mossul, é elevado o risco de explosão das “minas étnico-políticas” que caracterizam o Iraque e que podem levar à sua desintegração final, com ressonância na Síria e em toda a região. “Expulsar o Daesh e manter a paz são duas coisas muito diferentes”, resume o especialista americano Michael Knights.
Após a queda de localidades estratégicas, iraquianas e sírias, que tornaram o Daesh muito vulnerável, os Estados Unidos e a coligação internacional não podem retardar a reconquista da Mossul, segunda cidade do Iraque e verdadeira capital dos sunitas iraquianos, submetida ao terror jihadista. Disso depende uma nova estratégia para o Iraque e para a Síria — “Siraq”, segundo o novo calão. Num plano mais largo, a ofensiva contra Mossul é uma réplica à ofensiva russa contra Alepo. Do ponto de vista do Daesh é improvável uma retirada estratégica da cidade em que Abu Bakr al-Bagdadi proclamou o seu fantasmático califado e que lhe é vital em termos políticos e financeiros. Não é compatível com a sua lógica apocalíptica. 

Coligações de rivais
A correlação de forças parece tornar inevitável a reconquista de Mossul. Do lado jihadista estarão entre 3000 e 4500 combatentes, do outro mais 50 mil homens: as forças especiais do exército iraquiano e os peshmergas curdos, apoiados por milícias xiitas, milícias tribais sunitas e tropas “auxiliares” americanas e europeias. O problema é o preço. 
Não haverá “massacre aéreo” como em Alepo. Será uma batalha em terra, nos labirintos de uma cidade armadilhada, com um milhão e meio de habitantes que poderão servir de “escudo humano” aos jihadistas. Há um dito clássico: “A selva urbana é um pesadelo para as forças atacantes.” Não faltam cenários de catástrofe, que fazem parte da realidade previsível e também da guerra psicológica. Milhares de mortos? Centenas de milhares de pessoas em fuga? Destruição das pontes do Tigre? Ofensiva terrorista na Europa? Não vale a pena continuar o rol. 
Um ponto fraco da coligação, que muitas dores de cabeça dará aos americanos, é a rivalidade das forças no terreno. As unidades especiais do exército iraquiano, treinadas por americanos, não serão suficientes para garantir a batalha. Ex-inimigos, iraquianos e curdos aparecem nesta fase de mãos dadas. Mas os peshmergas, a melhor tropa, não poderão entrar na cidade por decisão do governo de Bagdad, dadas as aspirações curdas sobre a região. 
As milícias xiitas são indesejáveis em Mossul. Se as Unidades de Mobilização Popular — milícia xiita com conselheiros militares iranianos e um pesado cadastro de vinganças — entrassem na cidade, os curdos fariam o mesmo e, nesse caso, os turcos seriam tentados a avançar. Também os chefes sunitas da província de Nínive (a que pertence Mossul) são rivais entre si. 
Os turcos foram mantidos de fora, pelos seus desígnios sobre Mossul, mas não desistiram de participar na decisão do estatuto da cidade, que consideram parte do universo otomano. Afirmou Erdogan: “Se a coligação não quer a Turquia na operação contra Mossul, a Turquia activará o plano B e o plano C.” Mas não disse o que seriam. Ancara preocupa-se com os curdos e prepara “o pós-Mossul”, diz o analista turco Soner Cagaptay. “Ancara calcula que o Iraque permanecerá um Estado fraco e quer ter uma zona de influência no Norte, para se precaver contra os riscos decorrentes da instabilidade do país.” O Irão, actor central no Iraque, mantém uma sibilina reserva, mas está indirectamente no terreno.

Apetites de partilha
Mossul é desde a Antiguidade uma importante cidade. Desperta as ambições, pelo petróleo e pelo seu valor estratégico. O seu destino muito pesará numa reconstrução ou dissolução do Iraque. A sua libertação deverá favorecer os sunitas na relação de forças com as outras comunidades. Mas pode também acelerar a desintegração do país. São muitas as referidas “minas ético-políticas” no mosaico confessional que é Nínive. 
Não são apenas as potências vizinhas que têm interesses contraditórios que poderão eclodir após uma derrota do Daesh. Também as minorias — yazidis, turcomanos (uns sunitas, outros xiitas), cristãos ou assírios — têm longas listas de queixas e surgem planos para transformar os seus territórios em cantões autónomos dotados de total autonomia, estilhaçando Nínive, numa lógica de “cantonização”. O mesmo pensam algumas tribos. 
Aparentemente, trata-se de proteger as minorias oprimidas. “É o contrário”, responde a analista Beverley Milton-Edwards, do Brookings Doha Center. “Tais propostas são largamente motivadas por interesses sectários, patriarcais, tribais ou étnicos encobertos à custa dos direitos e da protecção de outras partes. (...) As suas implicações e riscos em termos da integridade territorial do país podem ser desastrosas.” Como seria em termos de segurança? “Teria cada putativo cantão de Nínive a sua própria segurança, uma polícia e serviços de informação?” 
O problema não está essencialmente nas minorias, mas na sua manipulação pelos mais fortes, sunitas e xiitas, turcos, curdos ou iranianos. É aqui que começa o risco de desintegração de Nínive que, a seguir, “atearia o fogo” a todo o país.

O Estado iraquiano.
Depois de Mossul, regressará em força o combate de ideias quanto ao que o Iraque deve ser. As diferentes forças têm concepções divergentes. Primeiro na Mossul sunita, que “não ama” o governo de Bagdad e cuja opinião é hoje uma grande incógnita. Abre-se uma oportunidade de reorganizar o Iraque. Os sunitas opõem-se a um governo central forte que será sempre dominado pela maioria xiita, exigindo uma grande autonomia das províncias. Uma parte dos xiitas quer manter ou até alargar a sua hegemonia, tal como o Curdistão iraquiano não abdicará da sua autonomia — uma quase independência —, nem dos territórios ocupados quando da ofensiva do Daesh e que lhe valeu o controlo de Kirkuk e do seu petróleo. Neste momento, o governo central está extremamente debilitado e muitas milícias xiitas nem sequer lhe obedecem.
A primeira batalha, a de Mossul, será sangrenta e deverá marcar a eliminação do Daesh do Iraque, a curto ou médio prazo. Mas a batalha política que se lhe seguirá tem uma muito mais larga dimensão, na medida em que nela se jogam a unidade do Iraque e o equilíbrio de forças no Médio Oriente. Só se saberá quem venceu em Mossul depois de se saber quem venceu em Bagdad.

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