Justiça entupida

Ano após ano as pendências nos tribunais vão-se mantendo ou diminuindo sem grande significado, tornando o exercício da Justiça algo kafkiano, como se tivesse que se escalar uma montanha envolta em formalismos, podendo perder-se a noção do próprio percurso processual. A Justiça fica assim entre Kafka, absurda e Camus, no Mito de Sísifo, na difícil possibilidade de se atingir.

Por outro lado, a justiça está tão enredada em juridismos que é praticamente impossível fugir dos burocratismos “juridiqueses” desligados dos interesses da vida real.

Atrás da cultura dos despachos para tudo e para nada e da ligação do complicómetro e do autoritarismo para, às vezes, esconder incapacidade, a pendência arrasta-se pelo chão da amargura para tristeza e desencanto da cidadania.

É certo que há falta de magistrados e funcionários, instalações e meios técnicos e tecnológicos, mas com o que há poder-se-ia fazer mais e melhor.

Um Estado que queira assegurar uma vida em comunidade não se pode render aos que não se importam que não haja Justiça por serem suficientemente fortes para fazerem eles uma espécie de justiça. Tem de haver dinheiro na despesa para que a Justiça funcione.

Um tribunal não pauta os seus tempos com base nas notícias dos média, antes no refinado processo de busca da verdade material e não nos “sharings” de audiências.

A simples ideia que os portugueses têm de entrar num tribunal para contribuir para a descoberta da verdade e para a realização de justiça é uma arrelia.

 Há um sentimento de impotência perante o modo como são tratados, muitas vezes como se fossem estorvos ou como algo à disposição dos magistrados que não têm horas para chegar. Também há advogados que chegam quando chegam, desprestigiando a classe que se devia impor com exemplos de pontualidade.

Até à presente data os mais diversos governos têm enfrentado o problema diminuindo as possibilidades de acesso à Justiça por via do brutal encarecimento das custas, da desjudicialização e do afastamento físico dos tribunais de que é exemplo o Mapa Judiciário. Louvor seja ao atual governo que pretende remediar parte do mal feito por decisão de Passos/Paula Teixeira da Cruz.

Estes fatores contribuíram par que a pendência tivesse diminuído desde 2013, embora o grosso dos atrasos se mantenha.

Quantos cidadãos morreram à espera que os tribunais decidissem lides que eram decisivas para as suas vidas em termos económicos?

Quantos viram a sua vida arruinada por não terem atempadamente a decisão que chegou tarde?

Quantos desesperaram pela espera de uma decisão?

Quantos continuam com a corda ao pescoço porque a Autoridade Tributária decidiu penhorar vencimentos?

Porém, vale a pena perguntar à cidadania o que tem feito para passar do desabafo e cair de seguida nesta resignação nacional de deixar-as-coisa-andar-o-seu-curso, quase como os processos no tribunal…

O Estado sempre lesto com a mão no gatilho contra os cidadãos e sempre retardatário no cumprimento das suas dívidas e obrigações, salvo quando se tratou de pagar aos credores da troika, indo buscar dinheiro ao bolso dos pobres cidadãos e cidadãos pobres, sem contemplações.

A Justiça em países deprimidos, com agudas desigualdades sociais, é uma aspiração profunda sem a qual funciona como uma desesperança para dar força a uma cidadania ativa. Uma sociedade sem justiça adequada e digna é uma sociedade adiada e com o futuro ameaçado. Sem justiça pode-se viver, mas é uma vida desesperante. A Justiça dá dignidade à vida. Ajuda a viver.

É necessário implantar uma cultura de rigor em que os primeiros a darem o exemplo devem ser os magistrados, os advogados e os funcionários.

Por outro lado o Estado deve dignificar o exercício da função própria dos magistrados e de todos os agentes da Justiça; o que implica melhoria das carreiras.

A crise na Justiça não pode ser uma espécie de tabique para esconder falta de rigor, insensibilidade, incapacidade para meter as mãos na massa e dar o melhor que cada um tem.

Julgamentos que aguardam para se realizarem dois, três, quatro e mais anos não são dignos de um país democrático e moderno.

A título de exemplo refira-se que no Reino Unido e no País de Gales uma ação cujo valor seja inferior a dez mil libras demora em média sete meses e acima desse valor um ano; na Alemanha quatro e oito meses; na França cinco e nove meses respetivamente.

A Justiça reflete a sociedade, mas esta instituição tem uma característica especial – a negação da justiça mata a alma e a coesão da comunidade.

A pendência nos tribunais é um cancro que não só contamina a Justiça, como a comunidade no seu todo. É um incentivo à desresponsabilização cívica.

Cada juiz deve ter um número de processos (com margem ampla) e ser responsabilizado pelo seu andamento adequado. A inércia é a arma dos inertes.

Um governo que se preze e preze os seus concidadãos tem de fazer mais que os anteriores. António Costa já foi ministro da Justiça tem que se empenhar mais como 1º-ministro para sacudir esta letargia e dar um novo rumo.

Não temos de viver neste atoleiro em que nos habituamos todos a que a anormalidade se considere normal.

Os atrasos crónicos devem terminar. Não há um determinismo neste setor. O Estado tem o dever de gastar adequadamente para que os cidadãos vejam a Justiça imperar.

 

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