Mulheres latino-americanas invadem as ruas para protestar contra a violência machista

Homicídio brutal de uma adolescente desencadeou onda de protestos em vários países. As leis que procuram proteger as mulheres existem, mas é a cultura que as subalterniza que prevalece e a mentalidade machista que se eterniza.

Uma mulher em protesto no centro de Buenos Aires
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Uma mulher em protesto no centro de Buenos Aires AFP/EITAN ABRAMOVICH
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Cidade do México, México AFP/ALFREDO ESTRELLA
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Cidade do México, México AFP/ALFREDO ESTRELLA
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Santiago do Chile, Chile AFP/CLAUDIO REYES
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Buenos Aires, Argentina AFP/EITAN ABRAMOVICH
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San Salvador, El Salvador AFP/MARVIN RECINOS
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San Salvador, El Salvador Reuters/JOSE CABEZAS
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Santiago do Chile, Chile AFP/CLAUDIO REYES
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Santiago do Chile, Chile AFP/CLAUDIO REYES
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La Paz, Bolívia AFP/AIZAR RALDES

Lucía Pérez foi drogada, violada e acabou por morrer, a 8 de Outubro. Vivia na cidade de Mar del Prata e tinha 16 anos. É ela agora o rosto de um protesto que se alastrou a ruas e praças espalhadas pela Argentina e que envolveu milhares de pessoas na última quarta-feira. Um protesto contra a violência, em particular aquela que tem por alvo as mulheres.

Lucía foi deixada no hospital por dois homens que disseram ao pessoal médico que ela tinha sofrido uma overdose, mas o que se veio a descobrir na autópsia permite concluir que a adolescente foi sujeita a violência sexual extrema, escreve a britânica BBC.

“Nem uma a menos”, gritavam milhares de manifestantes que interromperam durante uma hora a sua jornada de trabalho para sair à rua e que não arredaram pé, apesar da chuva e do vento fortes. Eram, na sua maioria, mulheres vestidas de preto e muitas erguendo cartazes em que podiam ler-se frases como “Se tocarem numa de nós, reagiremos todas” e “Basta de violência machista”.

A escritora Uki Goñi, que assina o artigo sobre as manifestações no diário britânico The Guardian, garante que a Praça de Maio, centro de Buenos Aires carregado de simbolismo (ligado à independência e aos protestos contra a ditadura), foi inundada de mulheres determinadas a acabar com os chamados “crimes de honra” e outros tipos de violência que praticamente todos os dias acabam com uma vida.

E porque neste caso a luta das mulheres argentinas é a luta das mulheres latino-americanas, esta quarta-feira houve manifestações semelhantes na Bolívia, no Uruguai, no Chile, no México, no Paraguai, na Guatemala e em El Salvador. Por todo o lado as palavras de ordem foram escritas em faixas de pano, simples folhas de papel e até no corpo. Umas atacavam a raiz cultural do problema, os valores assentes numa mentalidade machista que é comum a toda a América Latina – “Ensine o seu filho a respeitar”, “O machismo mata” ou um contundente “Nem virgem, nem puta, só mulher” –, outras apontavam o dedo à conivência da sociedade civil e do próprio Estado – “Onde há silêncio há impunidade, há cumplicidade”.

Na Argentina, e ainda segundo a BBC, muitas mulheres reconhecem o esforço do Presidente, Mauricio Macri, eleito no final de 2015, para lançar o debate à volta dos temas da igualdade de género, mas reclamam uma atitude mais incisiva das autoridades a vários níveis, sobretudo na educação, capaz de conduzir a uma mudança de mentalidades.

Os valores culturais que promovem a subalternização feminina são muitas vezes levados ao extremo, dizem, com resultados fatais. Na Argentina, mostram os números, uma mulher é morta a cada 36 horas na sequência de um episódio de violência doméstica. E a revisão, em 2012, da lei que tornou as penas mais pesadas para os autores destes crimes, quer acabem em homicídio ou não, ainda não teve resultados significativos. O mesmo se passa noutros 15 países da América Latina que adoptaram legislação semelhante, em boa parte, dizem os mais críticos, porque está muito longe de ser aplicada eficazmente.

Um crime bárbaro

Lucía Pérez é uma entre milhares de mulheres vítimas deste tipo de crimes, habitualmente cometidos por namorados, maridos, pais e outros membros da família, mas os contornos da sua morte, divulgados nas televisões e nos jornais, chocaram a Argentina. “Sei que dizer isto não é uma atitude muito profissional, mas eu sou mãe e mulher e já vi milhares de coisas na minha carreira, mas nada igual a esta litania de actos abomináveis”, disse a procuradora que lidera a equipa de advogados encarregada do caso da adolescente assassinada, María Isabel Sánchez, citada pela imprensa local.

Lucía ter-se-á dirigido à casa de um pequeno traficante para comprar marijuana e terá acabado por consumir também cocaína, noticia o jornal La Vanguardia. Depois foi-lhe introduzido um objecto no ânus com tal violência que acabou por provocar uma paragem cardiorrespiratória, revelaram os advogados do Ministério Público com base no relatório da autópsia. Já com a adolescente próxima da morte, os alegados autores do crime, um homem de 23 anos e outro de 41, ter-lhe-ão dado banho na tentativa de apagar quaisquer vestígios forenses e deixaram-na no hospital (os dois estão presos, assim como um terceiro, de 61 anos, acusado de encobrimento).

“Não se consegue compreender tamanha barbaridade”, disse a mãe de Lucía. “É impossível compreender.”

Aos protestos de milhares e milhares de mulheres anónimas juntaram-se, nas ruas e nas redes sociais, figuras públicas como a ex-Presidente Cristina Kirchner Fernández e Antonella Rocuzzo, mulher da estrela do futebol Lionel Messi, escreve o diário espanhol El País. A primeira constatou uma infeliz coincidência: “É incrível, no dia dos protestos, o projecto-lei com que se pretende reorganizar o Ministério Público elimina a unidade especializada em homicídios de mulheres.” A segunda apelou simplesmente à mobilização: “Não podemos continuar a permitir esta matança de mulheres!!!!! Nem mais um femicídio!!!!! Nem mais uma mulher golpeada!!!!! Nem mais uma mulher violada!!!!! Nem uma a menos!”

Algumas mulheres do actual Governo de Buenos Aires, como a vice-presidente Gabriela Michetti, também se pronunciaram: “Na Argentina, a cada 30 horas uma mulher é assassinada só pelo facto de ser mulher. Nem uma a menos!” No Chile, a Presidente, Michelle Bachelet, está entre as mais entusiastas apoiantes desta campanha antimachismo e antiviolência.

Lembra o Guardian em editorial que sete dos dez países do mundo com um número mais alto de vítimas de homicídio do sexo feminino estão na América Latina, um fenómeno que é reflexo de elevadas taxas de violência, de conflitos sociais e de crime organizado, mas também de uma hipermasculinidade agressiva que provoca uma tensão constante. Para o diário britânico, estas mulheres em protesto vieram mostrar que “a violência não é só o resultado da desigualdade e da discriminação, mas uma maneira de perpetuar estes problemas”.

Protestos semelhantes contra a violência sobre as mulheres tinham já sido feitos em Buenos Aires e noutras 80 cidades argentinas em Junho.

Em Portugal, 29 mulheres foram vítimas de homicídio em contexto de violência doméstica em 2015, segundo dados do Observatório de Mulheres Assassinadas.

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