Nobel? Não sei quem é

Filtrado pela máquina dylaniana, todo o ruído em torno do Nobel acabou reduzido ao mais absoluto silêncio.

O título desta crónica, glosa mais que óbvia do epílogo do Fado Amália, tem uma razão de ser. Se visitarmos, na internet, o site oficial de Bob Dylan, ficamos a saber muitas coisas: que ele continua incansavelmente em palco (actua hoje em Lubbock, Texas, e tem já agendados mais 23 concertos em apenas 34 dias); que em 11 de Novembro será editada uma caixa monumental de 36 CD com todos os registos conhecidos da sua controversa digressão de 1966; e até que ele ganhou um Grammy em 2016. Mas não há uma única palavra sobre o Nobel. Filtrado pela máquina dylaniana, o ruído em torno do assunto foi reduzido ao mais absoluto silêncio.

A Academia sueca, que tentou em vão contactá-lo, já disse que fará a festa na mesma. Mas este virar de costas ao assunto por parte do premiado pode tornar ainda mais divertida a distinção. Até porque, à conta do Nobel, têm vindo a dizer-se de Dylan barbaridades de palmatória, como a de que teria começado por ser um cantor de blues (quando foi o rock, e em seguida a folk, que primeiro o conquistaram) ou que mudara de nome para homenagear Dylan Thomas.

Este último ponto é uma espécie de "Rosebud" obscuro na vida de Dylan, que nasceu Robert Allen Zimmerman em Duluth, Minnesota, no dia 24 de Maio de 1941. Investigadores e biógrafos tropeçam com frequência aqui, e Dylan tem ajudado a confundir, com declarações contraditórias. Em 1965 disse: "Escolhi o nome Dylan porque tenho um tio chamado Dillon". Mas nunca se provou a existência de tal tio. E em 1966 desmentiu a conexão ao poeta galês: "Não mudei de nome em homenagem a Dylan Thomas. Isso não passa de uma história. Eu fiz mais por Dylan Thomas do que ele fez por mim. Quantos miúdos estarão agora provavelmente a ler a poesia dele só por terem ouvido essa história?"

Claro que tudo isto, como muitas coisas na vida de Dylan, tem parte mentira e parte verdade. Hipóteses ditirâmbicas para o novo nome há muitas. A Dillon Road, em Hibbing, Minnesota, onde o jovem Bob cresceu; Dillon, o nome de uma das mais conhecidas famílias de Hibbing; o xerife Matt Dillon, da série de TV Gunsmoke (porque ele gostava de westerns); Bobby Dan Dillon, nascido em 1930 e ainda vivo, jogador dos Green Bay Packers (porque ele gostaria de futebol americano); e, claro, a "homenagem" a Dylan Thomas, que viveu (e morreu) em Nova Iorque e frequentou o White Horse Tavern, em Greenwich Village, antes de Bob ali cantar.

Para resolver o assunto, Dylan explicou o caso no primeiro volume das suas Crónicas (págs.64-65). Primeiro, diz que cantava com o nome que lhe vinha à cabeça. O mais usado foi Elston Gunn. Um dia, a sua prima Reenie perguntou-lhe se aquele Elston era ele. Respondeu-lhe: "Espera para ver." Mas ele tinha outra ideia em mente, a acreditar nesta sua versão: "O que eu ia fazer assim que saísse de casa era simplesmente passar a chamar-me Robert Allen. Para todos os efeitos, aquele era o meu verdadeiro Eu - era o nome que os meus pais me haviam dado." Mas leu, depois, na revista Downbeat, um artigo sobre David Allyn. E desconfiou que ele se chamara Allen mas mudara a grafia. Imaginou-se antão Robert Allyn. Mas já lera algo de Dylan Thomas e comparou hipóteses. Robert Dylan? Soava-lhe pior que Robert Allyn. Claro que na família lhe chamavam Bobby (a prima Reenie, por exemplo), mas Bobby Dylan "soava a infantil". Além disso, havia Bobbys de sobra. Boddy Darin, Bobby Vee, Bobby Rydell, Bobby Neely. E Bob, que nos EUA é o diminutivo mais curto de Robert? "Bob Dylan tinha mais pinta e soava melhor do que Bob Allyn", justifica. Por isso, quando nas Twin Cities (área metropolitana do Minnesota) lhe perguntaram o nome, ele diz que "automática e instintivamente" respondeu: Bob Dylan. E em Fevereiro de 1962 legalizou-o. Ponto final?

Nem por isso. É uma verdade demasiado "limpa". Na carta que nessa altura escreveu a Reenie, ainda assinou Bobby. Mas o mundo já o tratava por Bob. Dylan, não Dillon ou Allen ou Gunn. Ainda assim, a figura que melhor lhe assenta é a do "completo desconhecido" de Like a Rolling Stone, sem um lar para onde voltar ("no direction home") e com múltiplos caminhos abertos à sua frente. Bob Dylan? Não sabemos quem é. Conhecemo-lo bem de mais para garantir isso.

Sugerir correcção
Comentar