Uma ópera para a Orquestra Gulbenkian tocar pedras

Porque a música vence a palavra, Bosch Beach, de Vasco Mendonça, dá-nos o som de pedras raspadas e papéis amarrotados para pensarmos os refugiados. É a terceira ópera de câmara de um dos mais internacionais compositores portugueses.

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Estamos num oásis, tipo Club Med, onde dois homens e uma mulher passam férias numa praia rodeada de horror Kurt Van der Elst
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Quando Vasco Mendonça foi convidado pela Fundação Bosch 500 para compor a música da ópera de câmara que se estreia esta quinta-feira no Teatro Maria Matos, em Lisboa, o libreto já estava escolhido. Ainda não se chamava Bosch Beach, o título desta obra dedicada ao famoso pintor holandês veio depois, mas o texto do escritor belga Dimitri Verhulst que chegou às mãos do compositor português estava numa fase final.

Estamos num oásis, tipo Club Med, onde dois homens e uma mulher passam férias numa praia rodeada de horror, de mortos, de refugiados. “É uma série de episódios, tipificações de coisas que acontecem durante umas férias decadentes, baseadas em beber e dançar o mais possível e fazer o máximo de sexo.” Bosch no século XXI: um paraíso, uma praia no Mediterrâneo, que afinal é um inferno, Lampedusa.

Já na sua terceira ópera de câmara, Vasco Mendonça reconhece que gosta de trabalhar com a voz e com o teatro e que “a ópera tem a vantagem de unir as duas dimensões”. Em Lisboa, onde esta produção fará a sua estreia nacional, estarão em palco 14 instrumentistas da Orquestra Gulbenkian, três cantores (Rodrigo Ferreira, contratenor; Damien Pass, barítono; e Marion Tassou, soprano), sob a direcção de Etienne Siebens, numa encenação do artista plástico belga Kris Verdonck, que mergulha pela primeira vez no mundo da ópera.

Ao contrário de The House Taken Over, a sua segunda ópera de câmara, que se estreou também no Maria Matos em 2014, aqui não há uma narrativa musical em que a tensão vai aumentando. “Era contraproducente estar a criar uma dramaturgia musical de tipo narrativo, uma história com a música.” O compositor assumiu o carácter episódico da peça e estabeleceu uma oposição entre o que se passa no resort, entre o que é cantado, histriónico, e relativamente eufórico, e o que está associado ao horror, algo mais ritualizado, até sagrado. Para o resort, utiliza arquétipos da história da ópera, como o trio, o lamento ou a ária, enquanto para o horror dos refugiados há momentos instrumentais, sem voz, silêncio, uma espécie de indução ao transe.

“O libreto apresentava-me três monstros: pessoas que cantam, dançam e copulam enquanto outras morrem ao lado. E nós imediatamente nos distanciamos deles. Isso para mim era relativamente problemático no libreto, porque a partir do momento em que há um julgamento e uma condenação podemos ir todos para casa tranquilos pensar que não somos assim. Tenho algum receio de abordar no meu trabalho questões tópicas.” O desafio foi olhar para esses monstros de Lampedusa e ver até que ponto são parecidos connosco. E esse desafio, explica Vasco Mendonça, coube à música.

“A música é uma linguagem poderosíssima. Como dizia Samuel Beckett, a música ganha sempre. Eu posso pegar numa palavra qualquer, numa obscenidade, e transformá-la num momento de harmonia e lirismo.” É o que propõe então esta dramaturgia musical relativamente ao libreto de Verhulst: “Cria uma espécie de serpente que redime em alguns momentos, de uma forma abstracta, aquelas personagens. Mas não tenta ilibá-las.”

Cada compositor, diz Vasco Mendonça, tem uma forma própria de pôr um texto em música. “Quando compomos uma ópera há sempre alterações que têm a ver com questões de prosódia, o número de sílabas, o tipo de acentuação, a própria natureza das consoantes. Tentei ajustar algumas coisas do texto ao tipo de escrita vocal que estou interessado em fazer, que privilegia construções gramaticais simples, palavras curtas.” A economia, acrescenta, é a característica principal de um libreto, porque “a música, ao adicionar uma dimensão abstracta, só pode comprometer a compreensão do texto”.

Instrumentos invulgares

Os instrumentos invulgares estão de regresso à ópera de Vasco Mendonça. Voltam o didgeridoo e as melódicas, dois instrumentos de sopro, mas desta vez há objectos ainda mais estranhos – pedras e papéis. Nenhum deles está particularmente associado a um ambiente. “A utilização destes instrumentos não é dramática, mas tem a ver, sobretudo, com uma pesquisa tímbrica. Se nós partirmos de uma formação tradicional e lhe adicionarmos elementos invulgares, isso enriquece o vocabulário tímbrico. Foi já o que tentei fazer na Casa.” A força da orquestra muda radicalmente.

Em Bosch Beach, Vasco Mendonça também pede dobragens aos instrumentistas, o que aumenta consideravelmente o número de instrumentos: “Isso é quando digo ao trompetista para tocar didgeridoo ou ao contrabaixista para tocar baixo-eléctrico e guitarra-eléctrica.” A escrita musical permite essa alternância e  não faz sentido, financeiramente, contratar uma pessoa para andar pela Europa toda a tocar apenas quatro compassos. “O instrumento não está lá do princípio ao fim, são pequenos apontamentos.”

Logo no prólogo, a Orquestra Gulbenkian vai raspar pedras e também há-de amarrotar papéis. É uma estreia em ópera, mas Vasco Mendonça já usou estes objectos noutros géneros musicais. E como é que a orquestra reagiu? – perguntamos. “Primeira estranha-se; depois entranha-se.” O compositor também pediu aos instrumentistas que cantem o refrão de uma canção que os protagonistas dançam, numa importação de linguagens como o samba ou o disco. “Isso também é relativamente invulgar e nem sempre é pacífico. Correu muito bem.”

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