Morreu Phil Chess, dono da casa do blues e do rock’n’roll

Nascido Fiszel Czyz, foi co-fundador da Chess Records, a editora que registou gigantes do blues como Howlin' Wolf ou Muddy Waters e deu impulso definitivo ao rock'n'roll ao lançar Chuck Berry e Bo Diddley. Tinha 95 anos.

Foto
Phil (à esquerda) e Leonard Chess à porta da sede da Chess Records, em Chicago Chicago Sun-Times

Naquele dia de 1961, enquanto esperava pelo comboio na gare de um subúrbio de Londres, Keith reconheceu Mick. O que lhe chamou a atenção não foi ver o quanto tinha mudado e crescido o seu antigo colega de escola. Mick levava debaixo do braço dois discos, um de Chuck Berry, outro de Muddy Waters. Foi isso que levou Keith Richards a abordar novamente Mick Jagger. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, dois irmãos nascidos na Polónia e imigrados para os Estados Unidos na infância, não sabiam da responsabilidade que tiveram nesse encontro. Estavam demasiado ocupados a trabalhar.

Phil e Leonard Chess tinham fundado a Chess Records 11 anos antes de Keith reparar nos discos da Chess que Mick levava debaixo do braço, e ainda estamos a viver as consequências da empreitada a que se propuseram. Esta terça-feira, Chuck Berry, 90 anos acabados de fazer, anunciou a edição em 2017 do seu derradeiro álbum. Chuck Berry era um desconhecido quando os irmãos Chess, desde Chicago, o revelaram ao mundo, dando impulso definitivo à explosão do rock’n’roll. Berry era apenas um entre muitos no catálogo da editora. Sem eles, o blues de Chicago não se tornaria uma das expressões mais influentes da música popular urbana do século XX, sem eles, a história do rock’n’roll seria substancialmente diferente, como o comprova um olhar rápido ao catálogo da editora. Basta citar nomes e pasmar perante tamanha concentração de talento: Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Elmore James, B.B. King, Etta James, Bo Diddley, Buddy Guy, Sonny Boy Williamson, John Lee Hooker.

Numa entrevista ao Chicago Sun-Times em 1997, Phil Chess explicou como conseguiu tal feito. Encolheu os ombros e exclamou: “Não sabia o que estava a fazer." A modéstia assenta-lhe bem, mas é isso mesmo, modéstia. Phil e o irmão não sabiam ler uma nota de música, não eram conhecedores de toda a história do jazz e do blues, mas tinham duas qualidades determinantes. Intuição certeira para o negócio e bom ouvido. “Isto é que nos dizia. Isto é que nos disse [o que escolher e editar]”, disse Phil em entrevista, enquanto apontava para as orelhas.

Phil Chess morreu esta terça-feira na sua quinta em Tucson, no Arizona. Tinha 95 anos. A notícia foi confirmada pela sua filha, Pam. A sua mulher, Sheva Jonesi, com quem esteve casado mais de 70 anos, morrera em Abril. O irmão, Leonard, falecera precocemente em 1969, aos 52 anos, meses depois da venda da Chess Records à General Recorded Tape (hoje, o seu catálogo pertence à Universal Music). “Foi isso que lhe andei a dizer toda a semana, que iria encontrar-se com o Leonard”, disse Pam Chess ao Chicago Sun-Times.

Da Polónia a Chuck Berry e Muddy Waters

A origem de toda esta história com epicentro em Chicago descobre-se num ponto muito distante da cidade americana, em Motal, a pequena cidade, outrora polaca, hoje território bielorrusso, em que Phil Chess nasceu em 1921. Dali emigrou o pai para os Estados Unidos. Foi sozinho e, quando o negócio a gerir um ferro-velho se tornou lucrativo o suficiente, chamou para junto de si a mulher, a filha e os dois irmãos. Quando chegaram aos Estados Unidos, não eram ainda Phil e Leonard Chess. Chamavam-se Fiszel e Lejzor Czyz, mas não demorou até que o pai decidisse americanizar os nomes da família para facilitar a sua integração. Para trás, ficava o quotidiano de pobreza na localidade da Polónia natal, sem electricidade ou água canalizada. “Era blues todos os dias”, comentaria Phil muitos anos mais tarde. Talvez tenha sido essa experiência a aproximá-lo dos mestres do blues e dos proto-rock’n’rollers que haviam migrado do Sul dos Estados Unidos até Chicago em busca do mesmo: encontrar na cidade florescente de indústria uma fuga à vida miserável nas plantações (e ao racismo endémico). A verdade será porventura, mais pragmática (como pragmáticos eram os Chess).

Como o negócio do ferro-velho não era para eles, Phil e Leonard venderam-no e apostaram num clube nocturno, o Macomba Lounge, localizado num dos bairros habitados pela comunidade negra, para onde passaram a contratar músicos jazz e blues. Por esta altura, Phil acompanhava o irmão à distância – fora estudar para a Western Kentucky University com uma bolsa garantida pelo talento no futebol americano e, depois, convocado para o Exército americano. Mas Phil já estava no Macomba Lounge quando um dos músicos contratados para o clube aborda os irmãos para saber onde poderia gravar um disco. Ilumina-se neles uma ideia muito simples. E se o fizessem eles mesmos? Em 1947 adquirem uma percentagem da Aristocrat Records. Em 1950, a Aristocrat Records transforma-se na Chess Records. Inicialmente, é Leonard que assume a gestão da editora, enquanto Phil se ocupava do Macomba Lounge. Quando o clube desaparece entre as chamas de um incêndio, Phil concentra-se também na Chess. E o resto, como se diz, é história.

Foi a Chess que editou Rocket 88, composta e interpretada por Ike Turner e os Kings Of Rhythm, creditada a Jackie Brenson and His Delta Cats e considerada por alguns especialistas como a primeira canção da história do rock’n’roll. Ali se estreou e fez carreira Chuck Berry, pioneiro do rock’n’roll autor de clássicos como Maybellene, Roll over Beethoven ou Johnny B. Goode. Ali solidificou o seu percurso o lendário Muddy Waters (Walking blues, com Rollin’ Stone no lado B, foi a segunda edição da Chess). Ali foi registada a voz de trovão do imenso Howlin’ Wolf, a harmónica de Sonny Boy Williamson, a guitarra voodoo de Bo Diddley. Em Memphis, os Sun Studios de Sam Phillips descobririam Elvis Presley ou Johnny Cash. Em Chicago, a Chess, que estabeleceria uma parceria com a editora de Phillips, registava o blues e o rhythm’n’blues fundamentais para o nascimento do rock’n’roll e divulgava alguns dos seus pioneiros mais determinantes (e também editava doo-wop ou músicos jazz como Ramsey Lewis e Roland Kirk).

Os Chess eram movidos, essencialmente, por motivações financeiras. Procuravam o lucro, não registar a história ou fazer justiça a músicos geniais pouco ouvidos fora da sua discriminada comunidade. Mas tinham a visão e o empenho necessários para que a aventura de dirigir uma pequena editora independente se tornasse um capítulo determinante da história musical do século XX. Criaram um dos melhores estúdios de gravação do seu tempo, célebre pela câmara de eco que tornou tão característico o som ali registado, e assumiram muitas vezes o papel de produtores.

Em 1963, adquiriram uma rádio local, que rebaptizaram WVON (sendo VON o acrónimo de “Voice of the Negro”), para divulgar a sua música – tornou-se rapidamente um fenómeno. Nos Estados Unidos, a Chess alargava o seu raio de acção. As encomendas de discos chegadas do estrangeiro permitiriam a Phil e Leonard perceberem também que a sua música galgara continentes. Estariam longe de imaginar, porém, o sobressalto que estavam a provocar. Os Beatles formavam-se ao som de discos seus (e de Elvis e da Motown), os Rolling Stones baptizavam-se com o nome de uma canção editada pela Chess, e Eric Burdon, dos Animals, ou Eric Clapton, futuro guitarrista dos John Mayall’s Bluesbreakers e dos Cream, descobriam ao som da Chess que tipo de músicos queriam ser. Não por acaso, a primeira digressão americana dos Rolling Stones, em 1964, contemplou uma paragem obrigatória nos estúdios da editora, onde gravaram uma sessão da qual foi retirado, por exemplo, um instrumental cujo título era a morada da Chess, 2120 South Michigan Avenue.

Ao longo dos anos foram-se ouvindo histórias de pagamentos por fazer ou de direitos autorais rapinados aos artistas. Ainda assim, sobressai dos livros, dos documentários ou das entrevistas feitas ao longo dos anos uma relação próxima, quase familiar, entre os Chess e os seus artistas. “[Phil] Estava sempre a falar ao telefone com o B.B. King. Encontrou o Ramsey Lewis há cerca de seis anos em San Diego. Continuava a falar com o Chuck Berry”, recordou a filha.

“Os blues tiveram um filho e chamaram-lhe rock’n’roll”, reza a frase célebre de Muddy Waters. Com o irmão Leonard, Phil Chess assegurou que o blues tinha uma óptima casa para viver e que nada faltaria ao rock’n’roll.

Sugerir correcção
Comentar