Assombrado por aquilo que não está lá

Uma história dos homens quando estes se olharam para si próprios, diante do espelho. Num livro de Sabine Melchio-Bonnet.

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© Ricardo Henriques

Autora que alia o talento para a narração a um conhecimento da história das mentalidades, Sabine Melchior-Bonnet apresenta-se aos leitores portugueses com este História do Espelho, revelando a abordagem multidisciplinar que tem vindo a caracterizar os seus estudos. Trata-se de um livro denso, repleto de desvios, intervalos, desdobramentos, que pretende contar uma história; sublinhe-se (pese embora o título), uma história, não a História. A autora privilegia claramente a realidade francesa, decisão que não contraria o objectivo a que se propôs no início dos anos 1990 (data de 1994 a primeira edição do livro): descrever o quadro histórico-social em que o homem se olhou para si próprio, colocando-se diante do espelho.

A primeira parte é dedicada ao vagaroso aperfeiçoamento do objecto e à sua progressiva vulgarização. Mais de 1000 anos separarão os primeiros espelhos feitos de metal, fabricados pelas civilizações mediterrânicas, dos grandes espelhos de vidro do Palácio de Versalhes, no século XVIII. Os obstáculos económicos e técnicos explicam este longo intervalo, para o qual também contribuem reservas religiosas, psicológicas e morais. Perturbava ver uma imagem clara, nítida e fiel de si, ver o outro como reflexo, entrar no jogo de espelhos. Só a partir de meados do século XV, a comercialização dos espelhos conhecerá o seu primeiro grande impulso, com a liderança de Veneza. A cidade do Adriático (é nos centro urbanos que os espelhos florescem, ao contrário do que acontece no mundo rural) impõe um monopólio, com os seus espelhos de vidro, os “mais puros do mundo, encaixilhados em preciosas molduras” (pág. 39): guarda os segredos e a receita do sopro, tem os melhores mestres e operários. E, na Europa, encontra clientes sequiosos nos monarcas, na nobreza, entre as mulheres citadinas, a emergente burguesia e os altos funcionários da administração. Tal domínio só lhe será retirado definitivamente em 1700, com a afirmação da manufactura francesa (depois da intervenção de Luís XIV) e ao fim de uma sequência de raptos, subornos, mortes suspeitas e pressões diplomáticas. A história do espelho-objecto foi uma história da espionagem industrial que culminaria com a vitória francesa, representada pelo espelho fundido e vazado.

Entretanto, findara o Renascimento. O espelho era agora mais do que uma analogia, um reflexo de Deus no homem ou um meio para o auto-conhecimento e a meditação. Encontrara um novo lugar, juntando ao seu papel de ordenamento do mundo o prazer do espectáculo, enquanto afastava de si, com o auxílio da revolução óptica do século XVII, o perturbador mistério que o assombrava. Este existia (apenas) naquele que via, pois era o pensamento do sujeito que tecia a ligação com o reflexo. Liberto da semelhança divina que o caucionava, os homens podiam, sem entraves, deformar a sua imagem, manipulá-la livremente.

Saliente-se a posição da autora: Sabine Melchior-Bonnet permite-nos entrever aquilo que guia o seu ponto de vista: não uma condenação, mas uma crítica das possibilidades da relação especular. O espelho abre tantos precipícios como caminhos promissores, transforma e transfigura sem violência, do mesmo modo que petrifica, permite ao homem confrontar-se com as suas falhas e deixo-a sucumbir às ilusões do narcisismo. Ciente desses poderes, a autora introduz-nos, recorrendo às intuições dos escritores (Pierre de Marivaux, Stendhal, Émile Zola, Guy de Maupassant, Montaigne, Théophile Gautier ou Lewis Carrol) aos efeitos que o objecto (de pequenas ou grandes dimensões, portátil ou encastrado num roupeiro) produziu nas relações humanas, na identidade, nas emoções do eu, nos matizes da sensibilidade e dos sentimentos.

Na França do século XVIII, servia para cuidar das aparências, era um instrumento normativo que avaliava a convivência e a conformidade ao código mundano. A consciência de si era consciência do próprio reflexo, da sua representação e da sua visibilidade: sou visto, portanto existo. A identidade passa pelo parecer, pelo papel que desempenha. E sobre esta apologia do parecer, que é também a da imitação, o espelho transformar-se-á no meio fundamental para a arte de agradar. Perde existência o homem que não se vê reflectido, a realidade e o reflexo confundem-se, “cada um gosta de si ou desgosta de si no espelho dos outros” (pág. 211). Antes instrumento da hierarquia social e do ideal aristocrático, o espelho banaliza-se nos séculos XIX e XX, anunciando a chegada de um mundo burguês e democrático em que o reconhecimento e a reciprocidade são necessidades narcísicas.

O reflexo não permite conhecer, mas ainda afirma o valor do pensamento, da operação reflexiva. O encontro especular convida o homem a projectar-se no mundo, a debruçar-se sobre si próprio. Desse gesto, decorrem riscos terríveis e descobertas preciosas. Atravessado o espelho, os homens podem renascer num mundo de sonhos e imaginação. Podem sentir-se outros nesse universo paralelo, descobrirem-se refletidos nos olhos dos amantes, como os artistas se reflectem nas palavras ou nas imagens das suas obras (pág. 331). O espelho pode continuar a ser, escreve a autora a partir de uma leitura de Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke, um espaço de virtualidades infinitas, restaurando a actividade simbólica.

Todas as ilusões, todas as travessias, todos os jogos parecem ser possíveis na relação especular. Mas a desilusão e tédio não a abandonam, é real o perigo do sujeito se dissolver no jogo dos reflexos ou se decompor na impessoalidade. Reduzido a “um espaço labiríntico que se furta à comunicação”, o espelho pode apenas revelar o incomunicável, o vazio, a confusão. E preso desse lado, o sujeito deixa de distinguir o exterior do interior, enlouquece. Diante de um sujeito cuja unidade e independência se tornaram momentâneas, o espelho, vazio ou estilhaçado, já não oferece inteligibilidade ao mundo.

É neste limiar que a historiadora se coloca. Se reconhece que o espelho permite ao homem a liberdade de um frente-a-frente solitário (na arte, na sua intimidade), consagrando-lhe um auto-questionamento de índole humanista (Sócrates e Séneca ainda nos põem na mãos um espelho para que nele nos vejamos reflectidos), não deixa de nos alertar para a sobrevalorização da imagem especular como uma desvalorização do sujeito e uma procura crescente da identidade. E esta é, em boa medida, a realidade que enfrentamos, realidade na qual o espelho continuará, talvez, assombrado por aquilo que não está lá.

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