Putin numa corrida contra o mundo antes de Hillary chegar à Casa Branca

Moscovo e Washington trocam farpas afiadas, como não se via desde o fim da Guerra Fria. A Rússia é acusada de interferir nas eleições americanas e de cometer crimes de guerra na Síria. Haverá um ponto final nesta escalada?

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Vladimir Putin ê em Clinton um “falcão”, ao contrário da “pomba” que se revelou ser Obama OZAN KOSE/AFP

Estamos à beira de uma nova Guerra-Fria, por causa do inferno em que se transformou a Síria? É pouco provável que a tensão se desanuvie pelo menos até haver um novo inquilino na Casa Branca – tudo isto tem muito a ver com a pressa de conquistar Alepo para Assad, antes da mudança de Presidente em Washington, dizem os analistas.

O corte de negociações entre os Estados Unidos e a Rússia por causa do bombardeamento impiedoso a Alepo é a causa imediata deste novo alarme, bem como a descoberta de que há mão do Kremlin a tentar pesar nas eleições norte-americanas.

O vice-presidente norte-americano, Joe Biden, garantiu que o seu país “vai enviar uma mensagem” ao Presidente Vladimir Putin, por causa dos ataques informáticos aos servidores do Partido Democrata e ao e-mail do director de campanha de Hillary Clinton, John Podesta, revelados pelo site Wikileaks – do qual Donald Trump se tornou um grande fã, depois de ter incentivado a Rússia a investigar os e-mails de Hillary. “Será na altura que escolhermos, e nas circunstâncias que terão o maior impacto”, ameaçou Biden, no programa Meet the Press.

Vários media americanos dizem que a CIA foi encarregue de realizar uma operação para embaraçar e incomodar a liderança do Kremlin.

Na Europa, a próxima cimeira dos líderes dos 28, esta semana, discutirá a possibilidade de aplicar novas sanções a Moscovo, desta vez a cidadãos russos implicados na guerra na Síria. O Presidente Barack Obama apoiaria a decisão, diz a edição de domingo do jornal alemão Frankfurter Allgemeine. Um dia antes da cimeira, que decorre nos dias 20 e 21, Angela Merkel e François Hollande encontrar-se-ão ainda com o Presidente ucraniano – outra crise com envolvimento russo.

Do lado russo, onde na televisão é invocada a ameaça de uma guerra nuclear, e foram convocados exercícios de protecção civil à escala nacional, que para quem vê de fora parecem preparações para uma guerra atómica, não se deixa baixar o tom. “As ameaças a Moscovo e ao nosso Governo são sem precedentes, porque são formuladas ao nível do vice-presidente dos EUA”, respondeu Dmitri Peskov, porta-voz de Putin. “Temos de tomar medidas para proteger os nossos interesses e cobrir os riscos.”

Como se fosse Grozni

Se os governos das potências trocam estas ameaças, na Síria a guerra continua sem trégua, com o Leste de Alepo, um bastião da oposição, a ser bombardeado sem piedade pela aviação russa, no que os EUA e os europeus dizem poder ser um crime de guerra. Ali ainda há 250 mil pessoas, e a queda deste sector da cidade seria um golpe para as forças que combatem Bashar Al-Assad desde 2011 – mas como disse a ONU, nas actuais condições, cairá, o mais tardar, até ao fim do ano.

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Um civil salta pelos escombros no centro de Grozni Vladimir Svartsevich/REUTERS
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Um mercado em Alepo atingido por um bombardeamento esta semana Abdalrhman Ismail/REUTERS

“Se Alepo cair, não há como dar a volta – os rebeldes terão de fazer a paz com Assad, que basicamente terá ganho a guerra”, comentou à Reuters Rolf Holmboe, ex-embaixador da Dinamarca na Líbia, Síria e Jordânia, agora no think tank Global Affairs Institute. “Os rebeldes ficarão isolados em enclaves. O regime continuará a atacá-los sem dificuldade.”

Apressar esse momento é o jogo de Assad, e o da Rússia, que não quer ver-se presa num atoleiro como o Afeganistão, um conflito marcante da Guerra-Fria, que se tornou numa guerra devoradora de soldados soviéticos, durante dez anos (1979-1989), e que foi um dos factores a precipitar a queda do regime comunista.

Mas a Rússia tem uma outra guerra traumatizante, a da Tchechénia, entre 1999 e 2009, na qual Vladimir Putin deixou a sua marca, e que muitos vêem como exemplo do se está a passar agora em Alepo, com bombardeamentos sucessivos até de hospitais. Recordam o assalto final a Grozni, que foi arrasada.

“Do ponto de vista de Moscovo, uma Alepo deserta e reduzida a escombros representa uma vitória. E a sua experiência diz-lhe que danos políticos sofridos hoje significarão pouco amanhã; que o Ocidente lhe perdoará e esquecerá quando surgir uma nova crise e precisar da ajuda russa”, comenta Mark Galeotti, especialista em Rússia no Instituto de Relações Internacionais, em Praga. “Para Moscovo, todos são pragmáticos, e os protestos do Ocidente sobre os seus métodos são apenas gestos de retórica, vazios de intenção.”

A Síria, pela sua posição geográfica, é um interesse vital russo. Nesta última semana, a Rússia assinou um acordo com o Presidente Bashar al-Assad para aumentar e tornar permanente a sua base militar de Tartous, a única que agora tem no Mediterrâneo. Cimentar a sua posição na Síria é, para Moscovo, fundamental, em termos geoestratégicos. Deixar que Assad perca a guerra não está, de todo, nos seus planos.

O que Moscovo quer é acabar com a resistência na cidade cercada, e antes de Hillary Clinton poder chegar à Sala Oval da Casa Branca.

Antes das eleições

Porque Putin vê em Clinton um “falcão”, ao contrário da “pomba” que se revelou ser Obama. “Vários políticos e intelectuais russos disseram-me considerar mais provável que Hillary Clinton decida usar a força na Síria do que o Presidente Barack Obama”, afirmou ao New York Times Andrew J. Tabler, do Washington Institute for Near East Policy.

“Putin quer acabar com Alepo antes das eleições americanas”, disse ao Times Nikolai Petrov, um cientista político russo. “O próximo Presidente americano terá de enfrentar uma nova realidade e será forçado a aceitá-la.”

“A queda de Alepo seria um facto consumado para o próximo Presidente norte-americano. A guerra contra o Estado Islâmico ainda continuaria, mas o regime garantiria a espinha dorsal Norte-Sul do país”, completou Tabler.

Só que não é garantido que este jogo funcione assim, sublinha o analista russo Dmitri Trenin, director do Centro Carnegie de Moscovo. “Ao contrário do que se passou no Afeganistão, pode haver retribuição, e rapidamente”, por parte dos EUA, escreveu no Financial Times. “A Síria, durante grande parte de 2016, foi palco da colaboração entre os EUA e a Rússia. Mas pode facilmente tornar-se um campo de batalha entre ambos, com os intervenientes que combatem por cada um dos lados a atacar a outra superpotência, e os EUA e a Rússia a dispararem um contra o outro”, avaliou.

“Esta é uma perspectiva muito perturbante que devia manter acordada muita gente em Moscovo e Washington. Mas a nova relação profundamente assimétrica entre as duas superpotências quase não deixa espaço para respeito mútuo”, considera Trenin.

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