Calceteiro cose “a pele” de Lisboa e coloca a calçada a caminho da UNESCO

Fernando Pereira Correia é um dos poucos calceteiros em Lisboa. Amigos e associações confirmam: É um dos "cinco ou seis" profissionais especializados da capital. Não se conforma e pede formação, preservação e respeito pela calçada portuguesa, que quer elevar a Património da Humanidade.

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Miguel Manso

Todos os dias quer vestir “a pele” da cidade. Como fez “muitos anos”, por mais de vinte, acompanhando mandatos e presidências, quando trabalhava o chão de cada câmara. Hoje, já são poucas as ruas que veste, deu-se mais à arte de alfaiatar as casas e os passeios privados. Mas Fernando Pereira Correia, de 53 anos, 40 de calceteiro, explica a comparação: “A calçada portuguesa é como a pele, é única e não se separa de nós.” Como a pele, única e própria – não de uma pessoa, mas de um país.

Um homem do Norte pela terra, um lisboeta “de coração” (e de clube). Fernando nasceu em Vila Chã do Monte, no concelho de Tarouca, em Viseu, mas escolheu a capital aos 18 anos. Mudou-se para Lisboa com o ânimo que levou aquele mar de gente a procurar oportunidades na capital. Corriam os dias frios do início de 1980 quando o autocarro o levou a uma Lisboa que desconhecia, a partir da qual cresceu a intenção de tirar a calçada da gaveta para “onde o país a atirara”.

Fernando é o homem por detrás da petição que pede a elevação da calçada portuguesa a Património da Humanidade reconhecido pela UNESCO, para que dela venha o “respeito, a preservação e a consideração que merece”.

Se não fosse o engenho e a arte de que Camões falava – o poeta que a calçada não se esquece de lembrar -, Fernando teria seguido uma vida no campo. Na aldeia, eram sete irmãos numa família que vivia da agricultura. Mas sempre teve o “bichinho da calçada”. Corria a espreitar, sempre que ia guardar as ovelhas ou vinha do campo, a oficina do calceteiro que a autarquia de Tarouca chamou para fazer uma calçada. “Queria ver como ele polia as pedras”, conta.

O calceteiro chegara então ao concelho sozinho e precisava de um servente. Na altura, as famílias deviam dar-lhe serventia (auxílio) para que a rua não ficasse em terra. Coube ao primo do pai de Fernando, na altura presidente da Junta, despertar o engenho no menino que já tinha o gosto. Era 1976, Fernando tinha treze anos: “Já lhe chegava as pedras, colocava umas pedritas.”

Por esta altura, o presidente da Câmara de Tarouca lançou-lhe o desafio de entrar no curso de formação de calceteiros, que acabara de abrir. Foi a correr pedir a autorização ao pai e teve que pedir “com muita força”: “O meu pai não me queria deixar ir, porque fazia falta com as ovelhas e para trabalhar no campo.” Quando o pai cedeu, pegou na bicicleta e, como todos os dias durante cinco meses, percorreu os quatro quilómetros para a junta de freguesia e os quatro de volta.

Hoje, ainda guarda o certificado do curso, então financiado pelo Fundo de Desenvolvimento da Mão de Obra, e trá-lo consigo: “É a prova de como tenho formação na minha arte.” Mas é dos poucos.

“Um médico não vai construir uma ponte, nem um engenheiro vai fazer uma cirurgia. Da mesma maneira, deve haver formação específica para ser calceteiro, porque não é qualquer curioso que o faz.” Fernando acredita que a iniciativa devia partir das autarquias e do Governo, para criar formação profissional ou superior na área.

O franzino, chefe dos pais

Aos 18, com “o corpo franzino e cara de moço”, já tinha cinco anos de ofício nas mãos. Trabalhara para a autarquia de Tarouca e fizera “uns biscates” na aldeia. Aos 16, assinava a primeira empreitada em nome próprio para a Câmara, com a ajuda do pai – a quem ensinara a fazer calçada – e a irmã – que “chegava a pedra”. Na altura, faziam 50 escudos a cada metro.

Tinha 17 anos quando chefiou uma equipa de calceteiros – todos com idade para serem seu pai – a trabalhar para a Câmara de Moimenta da Beira. “Eu orientava, marcava, fazia a folha, recebia e pagava. Era um miúdo, numa bicicleta, e fazia o cinco-em-um.” Chegava a casa com 700 escudos, todos os dias.

Já faltavam poucos meses para a maioridade, era Natal e disse à mãe: “Apronte-me a mala que em Janeiro [de 1980] vou-me embora.” Meteu-se no autocarro para sul, com destino a Loures onde morava o irmão, e acabou na sede da autarquia à espera que os 18 anos chegassem para puder preencher a vaga de calceteiro. Aos fins-de-semana iam trabalhando com sr. Cunha que conhecera na rua, enquanto este fazia calçada.

Se a história de Lisboa nunca se separa da história da calçada portuguesa, a de Fernando também não.

Já aos 13 anos era o “reguila” do curso e deu corpo à ambição. O “reguila” que quis fazer a calçada sem patrões, assiná-la em seu nome, e, dos 20 que então fizeram o curso, Fernando é o único que trabalha por conta própria. “Queria outros voos”: fez-se independente aos 27 anos – já lá iam 14 de experiência – e fundou a empresa com nome próprio.

Ensinou o filho, agora engenheiro industrial, como ensinou o pai. Um legado que quer passar a quantos o queiram aprender.

“Eu adoro trabalhar a pedra. Tenho um amor enorme pela calçada.” Di-lo de forma simples, como é, enquanto varre com o olhar a calçada portuguesa que veste a Rua Augusta, como veste todas as ruas da Baixa lisboeta, do Rossio ao Terreiro do Paço. Exceptuam-se as duas laterais e o terreiro à beira-rio.

“Em que país se vê os turistas a tirar fotos ao chão?”

Fernando não poupa críticas às substituições recentes da calçada por outros pavimentos, em especial das obras de António Costa, então presidente da Câmara de Lisboa, no Terreiro do Paço. “Há mais de 150 anos que há calçada em Lisboa, quantas pessoas não terão passado por cima dela e agora vamos retirá-la porque escorrega?” Revolta-o.

Acredita que o desconhecimento sobre a calçada portuguesa tem motivado “decisões erradas” de determinadas autarquias, como a não utilização do granito, também calçada portuguesa, uma pedra mais áspera que torna o chão não escorregadio. “E enquanto nós arrancamos anos de história do chão, a Câmara de Paris está a substituir o alcatrão de muitas zonas históricas para colocar calçada portuguesa. Com pedra portuguesa, com portugueses a fazê-lo”, sustenta.

Mas num jogo de consciências como este, falta manutenção, uma “falha grave”, denuncia. “O buraco numa calçada é como um incêndio. Se os bombeiros virem o fogo pequeno mas decidirem ir tomar café antes de o apagar, quando chegarem já não será pequeno.” Fernando vê o mesmo a acontecer na rua, com as pedras soltas encostadas aos edifícios, os buracos “há anos” por tapar. Episódios que fazem crescer o que chama “ódio à calçada”, uma moda das redes sociais. “Só quando se faz lá fora é que interessa?”, escapa-lhe.

“Querem destruir um património único que é português? Este é um marco que nós exportamos para tudo quanto é sítio. Escreveu sobre a calçada Fernando Pessoa, Cesário Verde, Amália e tudo o que é fado de Lisboa. Quantas vilas e quantas aldeias deste país não têm as suas origens e as suas tradições estampadas nos passeios das calçadas? Querem acabar com isto tudo?”

Bem procuramos a estátua de homenagem aos calceteiros, o Monumento ao Calceteiro, que haveria de estar na Rua da Vitória, entre a da Prata e a dos Douradores, mas já lá não está.

Ainda assim, percorrer a Baixa pombalina, do Rossio ao Chiado, é “um gosto” para Fernando. “Fico maravilhado, como os turistas, por este chão. Em nenhum país do mundo, em nenhum, encontramos uma calçada como esta.” Se a encontrarmos, ressalva, foi feita por portugueses e tem a nacionalidade de origem no nome. O Calçadão de Copacabana, de frente para o areal e o mar brasileiro, as avenidas francesas, os terrenos privados com o chão “que eles sabem ser português” de Macau, de Angola, de Moçambique.

Fernando já percorreu o mundo para onde a calçada o chamava. “Em que país se vê os turistas a tirar fotos ao chão? Só aqui. Porque é único. Porque não se vê disto em mais lado nenhum.” É como o fado, diz. Como o cante alentejano. Porque não haveria também a calçada de ser um património reconhecido pela UNESCO?, questiona.

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