É possível um discurso político sexista e misógino na Europa

A América tem Trump e a Europa teve Berlusconi. Ainda que o discurso na Europa sobre as mulheres seja “mais polido”, a política-espectáculo e os políticos-celebridade que invadem a comunicação social ameaçam a igualdade de género.

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Donald Trump numa sessão de campanha em Charlotte, na Carolina do Norte, esta sexta-feira Brian Blanco/Reuters

Não é impossível um político europeu usar um discurso assumidamente sexista e misógino como o que Donald Trump, candidato a Presidente dos EUA,  tem na sua campanha eleitoral. Quem o afirma, ao PÚBLICO, são as sociólogas Manuela Tavares e Marina Costa Lobo, que apontam como exemplo o antigo primeiro-ministro italiano, Sílvio Berlusconi.

Marina Costa Lobo, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS) e especialista no estudo dos sistemas políticos, assume que este tipo de atitude “é possível na Europa sim, Berlusconi é um exemplo disso”.

Manuela Tavares, autora de um doutoramento sobre feminismo e fundadora da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), sublinha que “Berlusconi também tinha um discurso e uma prática sexista e misógina de discriminação das mulheres” e precisa que “são conhecidos os vídeos, as suas festas sexuais com raparigas menores e também um em que se o via a apalpar uma polícia”.

“Mais polidos”

Esta socióloga sublinha que na Europa houve já casos como “o de Dominique Strauss-Kahn que acabou a ‘fazer pela calada’” e admite que os políticos europeus são “talvez um pouco mais polidos na linguagem”, uma vez que há questões já absorvidas sobre igualdade de género que tornam difícil que esta seja posta em causa”. Admite assim que “exista um discurso politicamente correcto com noção de que não se pode pôr o pé de fora”.

Todavia, a fundadora da UMAR frisa que este cuidado quanto ao discurso “não quer dizer que não se faça este tipo de discriminações sexistas e misóginas”. Adverte para o risco de novos fenómenos: “Fiquei preocupada com a entrevista de Nigel Farage, do UKIP, que apoiou Donald Trump e disse que era normal o que ele disse e que as apreciações de Trump sobre as mulheres eram idênticas às que os ingleses fazem.” Chama a atenção para o facto de que “o contexto das eleições nos Estados Unidos é bastante diferente do das eleições na Europa”, pelo que que “as regras eleitorais nos EUA” tornam “mais possível fenómenos populistas”.

Há uma contenção na Europa, quanto ao sexismo e à misoginia que faz com que os políticos europeus “não se atrevam tanto como em relação às políticas anti-imigração”, considera Manuela Tavares. “Na Europa, há populistas como Marine Le Pen que têm discurso contra os Direitos Humanos embora não o expressem da mesma forma", destaca: "A linguagem contra Direitos Humanos no populismo europeu é mais sobre racismo, xenofobia, anti-imigrantes, islamofobia.”

Abordando outra dimensão do tema, a fundadora da UMAR equaciona: “O problema é o apoio popular, Berlusconi tinha apoio popular. A questão é saber: até que ponto estas ideias antifeministas são apoiadas pelo voto?” É por isso que defende que as organizações feministas e os defensores da igualdade de género não podem baixar os braços: “Temos de estar preocupados com o facto de o conservadorismo na Europa introduzir a ideia de que tudo se pode dizer. É por isso que é preciso que as organizações reajam.”

Perigos da mediatização

Para Marina Costa Lobo, o comportamento  sexista e misógino “está ligado à mediatização da política e ao facto de que se tornou em entretenimento devido à forma como essa mediatização é feita”. A investigadora refere que “a comunicação política no século XXI é feita pela comunicação social, sobretudo através da televisão” e envolve “uma forte personalização da política”.

Esta mediatização pode ser positiva. “Marcelo Rebelo de Sousa não tem nada a ver com Trump ou com Berlusconi, mas é uma personalidade mediática”, explica Marina Costa Lobo. “Nem sempre a mediatização e a personalização desta são negativas”, acrescenta. Retoma o exemplo de Marcelo: “É uma personalidade mediática fortíssima, mas não se apresenta enquanto entertainer, é o professor, a autoridade dele é essa.”

Salientando como referência a obra de José Santana Pereira, Política e Entretenimento, a investigadora do ICS afirma que “Trump e Berlusconi vêm do mundo do entretenimento”. Donald Trump teve um programa do tipo reality show, The Apprentice, de que era co-produtor e apresentador, onde “criou imagem de empresário de muito sucesso, embora esta seja uma imagem falsa, pois na realidade, Trump já foi à falência várias vezes.”

Quanto a Berlusconi, recorda que “também se afirmou através da comunicação social”. No seu caso, mais do que estar em programas, era dono da Mediaset, um império de comunicação social em Itália. Já Manuela Tavares sublinha que “no caso de Berlusconi e de Trump estamos perante um perfil comum, o empresário de sucesso, com dinheiro, que domina meios de comunicação social e que faz o que quer.”

Mulheres-objecto

Marina Costa Lobo destaca que “o entretenimento leva ao culto da celebridade”. Sendo que, segundo a socióloga do ICS, “há uma corrente muito misógina que caracteriza o que é a celebridade do entretenimento”. Essa concepção é dominada pelos “conceitos de macho alfa e de mulher-objecto, mulheres fisicamente perfeitas e com menos de 30 anos”.

Este tipo de entretenimento e de criação de celebridades “leva a um retrocesso na agenda da igualdade de género”. Isto porque, “está associado a um tipo de vida onde se glorifica o gosto pelas mulheres-objecto, que as revistas cor-de-rosa ajudam a vender como estilo de vida glamoroso”, diz a investigadora. Ainda que haja “um caminho de igualdade de género muito consistente na Europa e também nos EUA”, Marina Costa Lobo adverte para “um mundo de celebridade que domina a net e tem muita força”.

A nova realidade comunicacional introduz na sociedade “um caminho prejudicial para as mulheres”, considera. Pelo que se congratula com o facto de que, “felizmente, esta tendência não tem sido muito prosseguida na Europa", embora, frise que “Nicolas Sarkozy se tenha aproximado deste tipo de celebridade” e “Berlusconi tenha ido mais longe, ao trazer para a política mulheres que se salientavam por qualidades físicas”. No caso de Silvio Berlusconi sustenta, mesmo, que “ao fazê-lo em nome da igualdade de género, desvirtuou-a”.

Por isso, Marina Costa Lobo conclui que “há um tipo de celebrização da política  prejudicial para as mulheres e que deve ser evitado”. Mas deixa uma nota de compensação: “O facto de haver cada vez mais mulheres na política contraria essa tendência que diminui as mulheres.”

Onde está o feminismo?

Paralelamente à evolução para o entretenimento em que a comunicação social enveredou, Manuela Tavares salienta que “os EUA mudaram”. O país que teve “os movimentos feministas pioneiros no mundo nos anos 60 e 70”, é hoje  outro no que se refere à luta pela igualdade de género. “Em 1966, foi fundada a National Organization for Women, que, “desde o início, foi uma organização muito establishment e que capturou e anulou o radicalismo feminista”, explica a especialista.

O passo seguinte no combate conservador à defesa dos direitos das mulheres aparece, segundo a fundadora da UMAR, nos anos 80, quando “surgiu o movimento Backlash que provocou um grande retrocesso”. Assinala “um livro muito importante, o Backlash: The Undeclared War Against American Women, de Susan Faludi, publicado em 1991”, como uma referência para perceber o que andou para trás.

Manuela Tavares advoga que “a sociedade americana de hoje não é a dos anos 60 e 70, a capacidade crítica de reagir é capaz de ser menor”. Uma conclusão que justifica com o facto de que “a comunicação social não tem mostrado a reacção feminista ao fenómeno Trump, a componente feminista não se vê, vê-se a anti-racista”. E questiona: “Se a reacção feminista fosse expressiva teria visibilidade na comunicação social?”

sao.jose.almeida@publico.pt

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