A memória do meu pai, o Nobel

Violante Saramago Matos viajou até ao dia 8 de Outubro de 1998, data em que soube da distinção máxima da Academia Sueca a seu pai, o escritor José Saramago.

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A certa altura deixamos de falar sobre isso. Naquele ano de 1998 o Nobel não era um tema tabu. Simplesmente não era um tema. Não povoava as nossas conversas. Há muito que não. Antes conversávamos muito sobre ele. Ciclicamente, claro. Já era tempo de a Academia Sueca olhar para a língua portuguesa. Seria este ano o ano? Mas o reconhecimento ia sempre para outro lugar, para outro nome, que não este.

Naquele ano de 1998 já não falávamos sobre isso. É verdade.

Antes, tentávamos descodificar os sinais políticos — há sempre uma componente política nestas coisas —, olhar para quem tinha recebido antes e para quem poderia ser galardoado depois. Demorávamo-nos a discorrer sobre a actualidade, numa tentativa de antecipar o que poderia ou não vir. Percorrer os nobelizáveis e os outros, que não sendo, podiam vir a ser. Mas naquele ano não. Falávamos de outras coisas. De livros. De nós.

Era de manhã. A meio da manhã. É aí que me situo na memória daquele dia. Estava numa reunião na Câmara do Funchal. Era vereadora, na altura. Eleita como independente pelo Partido Socialista. Estava no meio de uma discussão com o Ricardo Silva, do PSD, responsável pelo urbanismo da cidade. Foi o [André] Escórcio que bateu à porta — ou melhor, entrou esbaforido pela sala adentro, chamando o meu nome. “Espera, espera”, disse eu com um gesto de enfado. Insistiu o Escórcio. Insistiu muito. Uma, duas, três vezes: “Violante, Violante, Violante.” A minha resposta sempre a mesma. Sempre a gesticular, cada vez mais exaltada. “Agora não. Agora não, já disse!” Insistiu: “O teu pai. É sobre o teu pai.” Parei de imediato. Já tinha toda a minha atenção. Gelei. Olhei-o de frente. “O meu pai? O que aconteceu ao meu pai?” “Estão a dizer que ganhou o Nobel.” A reunião terminou aí.

Ele estava em Frankfurt, na Feira do Livro, e eu na Madeira. Em 1998, era como se ele estivesse no outro lado do mundo, numa ilha deserta. Não existiam as ligações rápidas, instantâneas, como agora. Era outra velocidade. Parece outro século. Era mesmo. Outro século, outro tempo. Liguei várias vezes. Perdi a conta de quantas. Ele deve ter feito o mesmo. Não sei. Sei que só a meio da tarde é que conseguimos falar. Foi ele que ligou, de um número que não era o dele. Não sei de quem era. Não perguntei. Importa? O que falámos? O que eu disse? Parabéns. Um beijo. Muitos. Mil beijinhos. Eu sei lá o que disse. Um amor que não se descreve, nem escreve. Um desejo imenso de o abraçar. Foi isso.

Tive de esperar. Um dia, dois. Foi uma semana de loucos. Nunca estamos realmente preparados para estas grandes coisas. Para as grandes emoções que nos assaltam assim, sem pedirem licença para entrar. Não conseguia reagir. Só o vi em Lisboa, quando chegou vindo de Lanzarote. Era eu entre muitos que o esperavam. Um Nobel português, num ano de Expo. É um pouco como agora, com a selecção na Europa e Guterres na ONU. Havia muito entusiasmo. Muita portugalidade. Um mar de personalidades no aeroporto. Senti, naquele momento, que todos ali tinham mais que ver com ele do que eu. Foi estranho sentir-me assim. Eu era a filha, a única filha. Só queria dar-lhe um beijinho, mas tive de esperar. Digo isto sem qualquer animosidade. Mas eu era a filha... não é?

Toda a minha vida cresci com este sentimento. Ainda o guardo. O de ser filha de. Durante anos fui filha de. É coisa boa quando a herança do nome dos pais nos enche o coração, mas é coisa difícil quando o tamanho do nome dos pais nos abafa o ser. Então é preciso saber emergir das águas daqueles dois caudais de talento, saber quem somos para além da grandeza deles, saber em que cruzamento — das duas ruas por onde correm dois nomes maiores da nossa cultura — fica a nossa esquina.

E ali estava eu agora. Naquela esquina do aeroporto. Ao olhar aquele homem, no meio da multidão, onde tantos viam frieza, distanciamento e má disposição, eu encontrava os afectos que transbordavam dos seus livros e das relações humanas, familiares. Um homem extremamente tímido, reservado, que vestia uma couraça para se proteger dessa timidez espantosa. E ele ali, no centro daquela celebração, e eu do outro lado do muro de pessoas. Tão próxima. Tão distante. A observar. Com um orgulho imenso no peito que levaria comigo — ainda o trago — para Estocolmo.

Não era só o prémio, o Nobel. Foram os fundamentos — “com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia” — da Academia Sueca para distinguir José Saramago. O ser maior do que um escritor. Um filósofo, como o meu filho, ainda pequeno, um dia disse. Só esses fundamentos bastavam-me. Mas havia mais. Quanto orgulho consegue segurar uma pessoa?

No banquete, na câmara de Estocolmo, onde o meu pai se sentou ao lado da rainha, encontrei mais razões para vibrar por aquele homem que era meu pai. Há uma espécie de hierarquia naquela cerimónia. Uma hierarquia mal disfarçada. Os laureados são dispostos no salão obedecendo a uma qualquer ordem de importância. E eu estava ali, com ele, a Pilar e a minha filha (cada um dos premiados só tem direito a levar três pessoas) na mesa de honra. O Danilo [o marido] e o meu filho ficaram em cima, na plateia.

A gente abala quando vive um momento daqueles. Abana quando ouve aquele discurso. Aquelas palavras imensas. Ainda hoje as guardo. Os Discursos de Estocolmo e o Ensaio sobre a Cegueira continuam à minha cabeceira, vou regressando a eles amiúde.

É uma maneira de celebrar José Saramago escritor. O país ainda o celebra. Festeja, mesmo. Deixa-me feliz saber isso — que depois de tantos anos ainda o lemos. Penso que ele também ficaria — ter presenciado, ter vivido a reconciliação com um país onde nasceu e cresceu foi importante para ele. Eu vi isso. Conversámos sobre isso —para lá dos Sousas Laras daquele Portugal pequeno, do Cavaco, com quem ele nunca mais falou. O que aconteceu com o Evangelho segundo Jesus Cristo deixou-o sentido. Triste, até. Quem não ficaria? Mas tudo isso foi ultrapassado.

Cerimónia da entrega dos prémios Nobel em 1998. Concert Hall de Estocolmo, 10 Dezembro de 1998 Reuters
José Saramago, o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Nobel da Literatura, dirige-se à audiência Reuters
José Saramago com a rainha Sílvia no banquete dos Nobel em 10 de Dezembro de 1998 Reuters
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Cerimónia da entrega dos prémios Nobel em 1998. Concert Hall de Estocolmo, 10 Dezembro de 1998 Reuters

Lê-lo é a maior homenagem. Continuar a mergulhar nos livros é festejar um autor, um homem, um pai que mais do que intransigente, que o era em questões de princípios, era essencialmente muito exigente. Basta ler com atenção a obra que deixou, que transcende a simples literatura. Se é que podemos falar de literatura simples.

Ele também era tudo menos simples. Recusava as respostas prontas. O sim e o não ficavam de fora das nossas questões. Queria que pensássemos. Era assim que ele era como pai, como escritor e como cidadão interventivo. Não existiam vários Saramagos. O que ele foi, o que ele era está ali, na obra que deixou. Estar a ler o meu pai é como estar a ouvi-lo falar, porque ele escrevia como falava. Não era um homem de sim e não, era um homem que respondia, procurando sempre uma explicação.

É assim que recordo o meu pai. É assim que guardo aquele ano de 1998, em que já não falávamos do Nobel e ele apareceu.

Depoimento recolhido pelo jornalista Márcio Berenguer

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