O piano de Joana Sá é tocado com o corpo todo

Quinta e sexta-feira no Teatro Maria Matos, Joana Sá fecha com À Escuta: O Aberto uma trilogia que a impôs como uma das mais estimulantes criadoras da música contemporânea portuguesa.

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Joana Sá tem uma noção da música que se diria coreográfica Vera Marmelo
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Nuno Carvalho
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Nuno Carvalho

Joana Sá está no palco do Teatro Maria Matos, em Lisboa, num dos derradeiros ensaios antes da apresentação esta quinta e sexta-feira do concerto À Escuta: O Aberto (para piano e instalação de placas ressoantes de metal), derradeiro capítulo de uma trilogia que iniciou em 2011. Embora as luzes não a denunciem por inteiro, está empalecida, tem o rosto e os braços brancos e a forma como o seu corpo se comporta diante do piano faz com que pareça, a espaços, obrigá-la a movimentos de marioneta ou exigir-lhe uma total perda de controlo sobre os gestos.

À Escuta, explica a pianista ao PÚBLICO, é uma peça construída numa exploração mais profunda de algo que a acompanha há vários anos: “a ideia do corpo como material temático na música”. Desta vez, no entanto, Joana Sá decidiu colocar um zoom sobre o corpo performativo, sobre a criação musical nascida a partir do movimento, recusando “a abordagem moralista” que acusa de subsistir na música e que se materializa no corpo como estando apenas ao serviço da execução musical. “Ainda está muito por desenvolver a ideia de que a música nasce do corpo como um todo; não apenas somente uns ouvidinhos de cristal separados do resto que ouvem ou imaginam a música.”

O que isto significa é que Joana Sá tem uma noção da música que se diria coreográfica. Tanto assim que, para À Escuta, contou com a “ajuda preciosa” do bailarino e coreógrafo Luís Antunes, essencial enquanto olhar exterior que a auxiliou a “limpar, pensar e consciencializar” os movimentos que vemos associados à interpretação das peças pianísticas. Mas se vemos a música em palco pálida e entregue a uma assumida estranheza de gestos para uma pianista, isso deve-se também à concepção visual do espectáculo desenvolvida pelo realizador e fotógrafo Daniel Neves. “Quando lhe mostrei os materiais que tinha, ele fez uma associação ao butô e aos filmes do Hijikata [fundador do teatro-dança japonês butô], que serviram de inspiração nesta perspectiva pessoal do movimento”, desvenda Joana.

Insistindo sempre em pensar o piano para além das suas limitações naturais, Joana Sá recorre com frequência a técnicas de piano semi-preparado. Desta vez, começou por trabalhar com a ideia de placas de ressonância que vemos penduradas ao fundo do palco. “Sou uma rapariga muito complicada e começo logo a dificultar as coisas”, confessa. Mas depois de investir na utilização desse material acabou por relegá-la para um segundo plano e focar-se no mais importante. Foi então que percebeu que “o principal do movimento é o corpo à escuta”. Dobrada numa pose pouco ortodoxa e expectante sobre o piano, é o seu corpo que se sintoniza com o instrumento, e espera o momento para procurarem fusionar-se ou cindir-se (buscando a fricção, o atrito, a resistência). “Sinto que estou ao piano de uma forma diferente”, diz. “E isso é bom, porque encontrei um lugar onde me sinto muito bem.”

Consciente de que a inexistência de um disco implica “um risco grande” num mundo em que a música parece sempre existir num formato gravado e antes de ser autorizada a pisar os palcos com algum impacto, Joana Sá espera que os dois concertos no Maria Matos lhe permitam perceber melhor o material que está prestes a estrear e só depois avançar para a sua fixação. Em disco, mas também, provavelmente, num filme de Daniel Neves que deixe testemunhar o quanto o corpo invade e está presente nesta música.

O fim da trilogia

À Escuta: O Aberto sucede a Elogio da Desordem (2013) e Through this Looking Glass (2011), fechando uma trilogia que Joana Sá define como “a procura por uma linguagem pessoal compositiva e performativa com o piano”. A necessidade de consolidar esta busca em três passos chegou no final do processo de Through this Looking Glass, coincidindo com o início do seu doutoramento, acabando por decidir tornar-se o seu próprio objecto de estudo. “É um doutoramento prático e teórico”, explica a pianista, “em que me foi dada a possibilidade de trabalhar sobre as minhas peças, o que me permitiu estar nelas de uma maneira diferente.” Com o término da trilogia que a afirmou como uma das mais estimulantes criadoras da música contemporânea portuguesa, Joana Sá acredita ter cumprido o seu propósito de construir uma linguagem pessoal, por muito que isso possa ser tão gerador de segurança quanto de alguma insegurança ao assumir os riscos necessários para empreender tal viagem. “Sinto-me bem na minha pele, não estou a tentar vestir a pele de mais ninguém”, resume. E essa é a melhor forma de terminar o caminho: garantindo que para a frente há mais caminho ainda. 

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