“Dylan está acima do Nobel”

O ensaísta António Feijó, professor de literatura inglesa e americana e vice-reitor da Universidade de Lisboa, vê na obra de Bob Dylan um dos exemplos maiores da criação artística das últimas décadas. Por sua vez Sérgio Godinho fala de uma distinção justa.

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AFP/TORSTEN BLACKWOOD

“Devo confessar que acho que o Dylan está acima do Nobel”, diz o vice-reitor da Universidade de Lisboa e especialista em literatura inglesa e americana, António Feijó, que vê na sua produção artística “uma das obras maiores das últimas décadas”.

Recordando que “há uma ligação entre poesia e música que é de sempre”, argumenta que o mais importante no caso de Dylan “nem é saber se ele é ou não um autor literário, que evidentemente é”, mas reconhecer que “a música popular nos últimos 50 ou 60 anos inclui “alguns nomes que vão ficar acima de quase todos os seus contemporâneos”, sem excluir escritores, artistas plásticos e outros criadores. Uma lista na qual Feijó inscreve, além de Dylan, John Lennon.  

E uma vantagem fundamental de Dylan e Lennon face a poetas que se ficaram pela palavra impressa é que, argumenta, na poesia publicada, “o leitor tem de intuir a voz que fala”, uma tarefa que nem todos os leitores terão a capacidade e/ou a disponibilidade para desempenhar, ao passo que Dylan não só “pega num corpo de textos e música e aumenta tudo aquilo em direcções inesperadas”, como o faz com “uma autoridade” que se sente desde as suas primeiras gravações, e alcançando uma “expressão directa”, formulação de Teixeira de Pascoaes a que Feijó recorre para notar que o ouvinte “recebe aquela interpelação de um modo tão directo que não a pode evitar”.

Sublinhando ainda a longevidade da carreira do novo Nobel da Literatura, e afirmando que este tinha já atingido “a plena maturidade quando editou o seu segundo álbum [The Freewheelin' Bob Dylan, de 1963], aos 21 ou 22 anos, António Feijó já não concorda com os que admiram quase exclusivamente o músico dos sixties, defendendo a grandeza do Dylan dos últimos 15 ou 20 anos, autor de “uma obra-prima absoluta como Not dark yet, do álbum Time Out of Mind (1997), do qual o ensaísta destaca ainda a canção Blind Willie McTell. Mas o que faz com que Not dark yet “valha a obra completa de muita gente”, nota Feijó, “não é apenas o que está no papel, mas é também o Dylan ao piano, o Mark Knopfler com uma guitarra acústica, e o modo como aquilo é dito: é isso que põe Bob Dylan numa categoria à parte”.

Além de o admirar como escritor e compositor, Feijó acha ainda que Dylan “é um intérprete tão grande como Sinatra”. E embora tenda a concordar com o jornalista de música e crítico cultural Greil Marcus – “quando lhe perguntaram, há uns anos, se Dylan devia ganhar o Nobel, respondeu que faria mais jeito a um escritor, sugerindo que ele não precisava do prémio para nada” –, Feijó fica ainda assim “contente por ver esta pessoa de 75 anos, com uma obra tão gigantesca atrás de si, a receber a consagração final que merece”.

"Um prémio justo"

O cantor e compositor Sérgio Godinho foi surpreendido pela distinção, mas fala de "uma enorme satisfação" quando se refere ao Nobel entregue a Dylan. "É ao mesmo tempo o reconhecimento de uma arte e de um ofício que também é o meu, e essencialmente é uma distinção merecida porque o Dylan tem uma importância fulcral na música e na cultura americanas."

O que o distingue, diz ele, é a sua capacidade para se reinventar ao longo dos anos. "Ele começa pelas raízes folk puras – o seu ídolo é o Woody Guthrie – e quando faz o seu primeiro disco canta à sua maneira, com uma energia desvairada, uma série de canções de recolha e só duas da sua autoria. Só depois ele começa a operar com fulgurância com uma criatividade torrencial, entrando na canção social e política, mas fazendo hiatos, indo para outros terrenos, exprimindo uma série de emoções e de situações, cortejando o surrealismo ou a beat generation."

Quando pensa numa canção emblemática ocorre-lhe Like a rolling stone, "porque exprime a transformação dele e também a introdução dos instrumentos eléctricos, naquilo que na altura foi uma opção muito criticada." Na sua opinião é natural que surja agora alguma polémica à volta da atribuição - "a polémica pode ser positiva", diz - mas "a Academia reconhecer um género que nunca tinha sido premiado é um acontecimento que enalteço", reflecte. "É uma arte que junta duas artes: a palavra e a música, sendo o Dylan premiado pelo aspecto literário, embora não nos possamos abstrair que as canções congregam duas formas de expressão. É um prémio justo.”

De uma geração mais nova, o músico Samuel Úria, em declarações à Lusa, partilha com Godinho a “importância inacreditável” da atribuição do Nobel da Literatura a Dylan. "É como se tivesse ganho um familiar próximo”, afirmou. “É o maior escritor de canções, a maior figura da música popular, está num mundo à parte, tem uma importância increditável”, disse o músico de 37 anos que, tal como Godinho, diz reconhecer influência indirecta de Dylan nas músicas que escreve. “Conheço os poemas, as letras, a biografia, é uma coisa muito de fã, de facto” assume. “Ele consegue com uma grande mestria e originalidade sintetizar uma poesia eficaz e muito rica que sirva o formato da canção”.
 

“Começou no topo”

“É um prémio que faz todo o sentido para a gente da literatura e não creio que possa ser uma surpresa ou um escândalo, nem que tenha sido dado por critérios políticos”, diz João Menezes Ferreira, autor do livro Estro in Watts - A Poesia da Idade do Rock, antologia de 563 letras do universo pop/rock entre 1955 e 1980 dedicada à palavra cantada.

Bod Dylan, que tem nove letras na sua antologia, é também um escritor mais convencional – “e os livros de memórias dele são do ponto de vista literário bastantes relevantes” – mas “é obviamente a sua importância para a história da música e da literatura musical, das líricas ligadas com a música, que merece destaque”. Bob Dylan, ao contrário de Patti Smith ou de Leonard Cohen, torna-se escritor enquanto letrista. Ao contrário destes dois exemplos, não era um poeta consagrado antes de começar a escrever música. “Torna-se escritor por mérito enquanto escritor de canções.”

Aliás, a tese do seu livro publicado em 2013 “é que Bob Dylan é sob qualquer critério um grande poeta”. Dylan, diz, “é obviamente um escritor símbolo, neste caso de uma geração, e mais propriamente da geração jovem, que não tinha heróis com discurso. Por coincidência, os seus poemas dos anos 60 são os melhores, literariamente: começou no topo!”. Menezes Ferreira diz que era “absolutamente esfuziante” até à década de 70, tornando-se depois “mais plano”, mas ao autor também sempre lhe interessaram mais os anos de juventude e é aí que a sua antologia se centra.

As suas letras preferidas de Dylan são A Hard rain's gonna fall (1963), Ballad of a thin man (1965) e Sad eyed lady of the lowlands (1966). “Enquanto símbolo iconoclasta, a sua popularidade pela música rock vingou poetas geracionais anteriores, que não conseguiram sair da marginalidade, como a beat generation.”

 

Apostar nos 'nobelizáveis'

Francisco Vale, da Relógio D’Água, que editou em Portugal as Canções de Bob Dylan (numa tradução de Pedro Serrano e Angelina Barbosa), admira o músico norte-americano, elogiando a dimensão poética das letras das suas canções, mas também o modo como estas formam “uma espécie de narrativa, com personagens marcantes”. Ao que não atribui excessiva importância é ao próprio Nobel da Literatura, “um prémio confinado aos horizontes da Academia Sueca”. Vale argumenta que “se colocarmos num prato da balança os ‘nobelizados’ que ultrapassaram a usura do tempo e se mantêm hoje como autores importantes, e no outro os que nunca receberam o Nobel, como Proust, Nabokov, Virginia Woolf ou Jorge Luis Borges, acho que a balança se inclinaria a favor destes últimos”.

O que não o impede de reconhecer que “o Nobel é o principal prémio literário e chamou a atenção para muitos autores”. Mas já o surpreenderam um pouco as reacções mais negativas à escolha de Bob Dylan. “Há poetas e pessoas da música que acham que o prémio foi bem atribuído, outras que fizeram declarações paternalistas, como o Bruno Vieira de Almeida, que diz que o Dylan não merecia que lhe fizessem isto, e depois há os editores e autores que tinham outras expectativas, como a Alice Vieira” [num muito citado post no Facebook, a escritora exorta os galardoados anteriores a devolver o prémio], resume Francisco Vale, para quem já devíamos estar habituados às surpresas da Academia Sueca, que até teria feito escolhas mais desconcertantes “quando escolheu Churchill ou, agora, os textos jornalísticos de Svetlana Alexievich”.

O que lhe parece “uma estupidez” é “condicionar o catálogo, como alguns editores fazem, para incluir autores nobelizáveis”, porque para um autor ganhar o Nobel, ironiza, “além de ser mais ou menos conhecido, é preciso que tenha opiniões políticas, esteja preocupado com o futuro da humanidade, declare que apoia os oprimidos e as minorias e, se possível, deve ser perseguido no seu país ou, pelo menos, dizer que o é”. E mesmo assim, claro, não há garantias, de modo que lhe parece mais sensato publicar os autores de quem gosta, que às vezes até podem acabar por ganhar o prémio, como, no caso da Relógio D’Água, aconteceu já com Harold Pinter (2005), Alice Munro (2013), Patrick Modiano (2014) e, agora, Bob Dylan.

Mais grave ainda são os autores que “adaptam as suas obras para ver se recebem o prémio”, diz Francisco Vale, que garante conhecer alguns: “há escritores que no início da carreira tinham um humor corrosivo, e que depois condicionaram a sua escrita para caber nos moldes do Nobel”.

 

“Choca-me bastante”

Maria Alzira Seixo, professora de literatura da Faculdade de Letras de Lisboa, é uma das vozes que discorda da escolha de Bob Dylan. “Choca-me bastante.”, diz. “A poesia de Bob Dylan tem muita qualidade na sua relação com a música, a obra mescla o som da composição literária com o da musical, e quando [estes elementos] são separados, empobrecem-na”, argumenta a ensaísta, para quem “a Academia Sueca não seguiu o espírito de Alfred Nobel ao escolher uma obra compósita”.

“Acho interessante que este prémio vá ao encontro da Literatura Comparada – que encara vários tipo de expressão artística –, é uma via possível, mas só o apoiaria se não houvesse escritores, centrados no literário, que o merecessem, como Ngugi wa Thiong’o, António Lobo Antunes ou Philip Roth”, acrescenta Maria Alzira Sexio, que considera “escandaloso que a riquíssima literatura brasileira ainda não tenha sido contemplada.”

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