Em Lampedusa a vida continua

Um filme apontado às boas consciências, mas que parece ser, ele próprio, um caso de má consciência.

As imagens dos refugiados são montadas em paralela com um pequeno mosaico da vida na ilha
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O filme anterior de Gianfranco Rosi, Sacro GRA, colecção de curiosidades humanas e culturais encontradas ao longo de uma auto-estrada da periferia romana, mostrava bem que ele é, na melhor das hipóteses, um herdeiro contemporâneo, mas mais presunçoso, mais afectado e menos bom, do Gualtiero Jacopetti que se celebrizou nos anos 60 com a série dos Mondo Cane. E é a um símbolo do nosso “mundo cão” que se atira em Fuocommare (literalmente, “fogo no mar”, em dialecto do sul de Itália, e título de uma canção ouvida no filme), a ilha de Lampedusa, entre a Sicília e o Norte de África, aonde todos os dias aportam, ao Deus dará, dúzias de refugiados à procura de melhor sorte na Europa. Filme de “tema” na mais intimidatória acepção da palavra, porque só gente insensível pode ficar indiferente a uma questão crucial dos nossos dias, que de crise humanitária se transformou em crise política que, de Calais a Budapeste, vai destapando o pior da Europa – e a intimidação parece ter resultado em Berlim, cujo festival deste ano lhe atribuiu o Urso de Ouro, aparentemente mais pela “importância do tema” do que por outros e mais palpáveis méritos.

Mas se Fuocoammare é um filme feito – bastante oportunisticamente – a jogar com a dificuldade em ficar-se indiferente ao seu tema, é ele próprio um prodígio de indiferença. Veja-se o lugar dos migrantes no filme, reduzidos a uma condição de super-figurantes, que Rosi filma com enlevo mas sempre com distância, raramente os individualizando ou arrancando a uma “nuvem”. É difícil ver algum interesse de Rosi na humanidade deles, é difícil encontrar um momento em que eles lhe sirvam para algo mais do que um elemento estético (“matéria”, portanto) necessário à composição de enquadramentos supostamente “belos” mas quase sempre enjoativos na sua plasticidade forçada (o gosto de Rosi pela simetria, esse pecado original). Um momento, só, parece revelar algo um bocadinho mais profundo, que de qualquer modo Rosi abandona logo a seguir, como se tivesse apenas registado mais uma curiosidade: o jogo de futebol (um “Síria-Eritreia”) a que um grupo de refugiados se dedica, num pátio de gravilha e com garrafinhas de água a marcar os postes da baliza.

No resto, a vida continua em Lampedusa. As imagens dos refugiados e das operações de resgate no mar são montadas em paralela com um pequeno mosaico da vida na ilha, praticamente sem contacto (excepto pelas notícias da rádio ou pela figura do médico) com a situação dos desgraçados que vão dando à costa – como se houvesse uma espécie de “cordão” a isolar os locais e os que chegam de África, e duas realidades paralelas que nunca se tocam ou mutuamente se afectam. Mas o estilo rígido de Rosi, e a sua procura do plano-efeito (mesmo quando mostra apenas um miúdo a brincar com a sua fisga), tratam de assegurar que nem essa via seja explorada com um mínimo de intencionalidade ou profundidade. Fica um filme apontado às boas consciências, mas que parece ser, ele próprio, um caso de má consciência.

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