O legado de António Guterres à frente do ACNUR

São frequentes as alusões à prestação de António Guterres como Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) durante a última década. Mas importa revisitar o seu legado agora que foi eleito secretário-geral da ONU, o que aliássó aumenta a responsabilidade para com os refugiados. O legado de Guterres neste domínio apresenta três pilares fundamentais que importa detalhar e que vão muito para lá da vocação inicial da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951: (1) o alargamento da área de intervenção do ACNUR muito para lá da europa e do médio-oriente e da cooperação com mais organizações fora e dentro da ONU; (2) o aprofundamento do mandato e das áreas de actuação da agência, dado o facto das catástrofes humanitárias estarem hoje associadas à deslocação forçada interna – que a noção estrita de refugiado não cobre; e (3) a reforma interna do ACNUR que projecta a agência para um lugar de destaque no plano internacional e fomenta uma acção sem precedentes no terreno. Passo a explicar.

A Convenção de 1951 cedo revelou as suas limitações: pressupõe, desde logo, que os refugiados que visa proteger se encontram fora do seu país de origem; que fugiram da perseguição directa do Estado; e que, como tal, não podem contar com a sua protecção. O protocolo de 1967 trouxe alterações importantes àquele regime internacional, nomeadamente alargando o escopo geográfico de uma convenção que estava pensada sobretudo para responder à crise dos refugiados decorrente da segunda guerra – o que permitiu uma atenção redobrada à Ásia do Sul nos anos 70 por parte do ACNUR. Mas nesse período, e sobretudo nas décadas seguintes, o recurso a meios bélicos não-convencionais e por procuração, que atenta sobretudo contra civis, não apresenta para já o corolário lógico dos "estados falhados" porque a competição por esferas de influência dos dois blocos não o permite. Será só nos anos 90 que este fenómeno causará, como o próprio Guterres reconhece num famoso artigo de 2008, deslocações em massa, porque o vazio de poder não dá lugar à paz e abre pelo contrário espaço à emergência de actores não-estatais que se tornam, aliás, clientes insaciáveis da indústria de armamento do primeiro mundo.

Nesta medida, os anos 90 ficaram marcados pelo discurso da segurança e as crises migratórias passam também a ser abordadas do ponto de vista das garantias de "standards mínimos" de vida sem ter em conta a integração social dos refugiados. A harmonização discursiva na ONU em torno da segurança sairá ainda mais reforçada pela agenda ocidental do contra-terrorismo via ‘exportação da democracia’ já no início deste século, o que aliás ofuscou a visibilidade do ACNUR dada a mediatização do "Terror" e de uma agenda eminentemente securitária na qual os direitos humanos figuram como discurso legitimador da intervenção militar. O ACNUR andou por estes anos a reboque de agendas que nunca consideraram a migração forçada uma prioridade e chegou mesmo a conotar, de forma infundada e casuística, o terrorismo com o tráfico ilegal de migrantes.

Será sobretudo com Guterres, que o ACNUR recupera a sua orientação mais humanitária - sem contudo recair em paternalismos assistencialistas – típica de Altos-Comissariados como o de Aga Khan na década de 70 – apesar de diferenças assinaláveis. O grande desafio da agência sempre foi, continua a ser um espelho perfeito da eterna tensão existencial da ONU e resume-se à seguinte questão: como manter a sua missão universalista permanecendo, ao mesmo tempo, relevante na prossecução dos interesses dos estados individualmente considerados. Ou melhor, individualmente não, porque há estados mais estados do que outros, de cujo financiamento depende. Mas Guterres conseguiu apesar do reconhecimento dos estados como responsáveis directos pelo respeito legal dos direitos dos refugiados, reforçar a autonomia da agência face a agendas externas. E confirmou o afastamento face à paranóia contraterrorista que, desde 2001, tinha tomado conta do ACNUR e da própria ONU, como o demonstram vários discursos onde a ideia de que o asilo não passa de um ‘safe haven for terrorists’ é ventilada. Em 2005, a necessidade de proteger refugiados tinha portanto de ser retomada enquanto um fim em si, e não apenas como meio para garantir a segurança dos estados.

Por um lado, Guterres teve consciência da necessidade de ultrapassar um certo humanitarismo paternalista – que menoriza os refugiados ao procurar garantir apenas "standards mínimos" de sobrevivência. O ACNUR passou a adoptar uma noção temporal e progressiva de ‘necessidades básicas’ que mudam à medida que o migrante é integrado, retornado ou permanece mesmo nos campos de refugiados. Esta inversão de paradigma ainda está longe de apresentar resultados visíveis porque opera através de uma verdadeira reconceptualização ético-prática dos direitos humanos, que deixam de ser direitos abstractos – ditos "naturais" – e passam a exigir, pelo contrário, deveres concretos por parte dos Estados. Talvez a reforma da ONU deva passar sobretudo por aqui. No seu artigo ‘Millions Uprooted’, Guterres deixa implícita a sugestão de que os direitos humanos – e o direito de asilo em particular – nem sempre protegem os mais pobres quando servem de "pretexto" para justificar políticas cada vez mais exclusivistas no norte, como demonstra o actual acordo entre a UE e a Turquia.

Claro que estamos longe de uma simetria perfeita entre direitos e deveres, típica aliás da noção mais clássica de ‘direito’ que os direitos humanos alienaram. Mas o distanciamento face a uma concepção excessivamente abstracta de direitos humanos poderá, no caso dos refugiados, fazer o seu caminho em direcção, por exemplo, ao ideal de ‘territorialidade ética’, consagrando o ius situs que vincula o estado à protecção de qualquer pessoa territorialmente presente, independentemente da cidadania ou nacionalidade. Só dessa forma poderão os estados ficar vinculados ao cuidado e à assistência humanitários, de acordo com critérios morais que o direito internacional estabelece. Resta saber o que fazer nos contextos em que o Estado colapsou – mas esse é um desafio para a ONU em geral e não apenas para o ACNUR.

Por outro lado, a agência alargou o seu mandato para incluir não apenas  refugiados mas também migrantes em situações particularmente vulneráveis, desenvolvendo políticas de incentivo à integração social dos refugiados em conjunto com outras agências, no que ficou conhecido como cluster approach. Tal permitiu dedicar grande parte dos seus esforços para o apoio aos chamados IDPs, internally displaced persons. No discurso de tomada de posse de Guterres é já notória a consciência deste desafio. A ausência dos termos "refugiado" ou "direitos humanos" confirmam a necessidade de uma acção humanitária que se quer o mais flexível possível, e concentrada directamente nas necessidades ‘das pessoas que estão a nosso cuidado’ (2005). Guterres confirmaria esta viragem subtil em 2006, demarcando-se dos security concerns que segundo o próprio alimentam a "intolerância" e o "populismo".

A prioridade de Guterres em abarcar todos os migrantes em situação vulnerável – e sobretudo os deslocados internos – revolucionou o ACNUR. A agência oferecia em 2008 protecção ou assistência a 14,4 milhões de deslocados internos e foi aumentando a um ritmo admirável até 2015 – apesar do aumento desproporcional de deslocados. Este fenómeno não podia ser, segundo o português, "confundido com os temas da migração, do terrorismo ou da insegurança"; podia, isso sim, ser pensado em articulação com as alterações climáticas, que já ao tempo Guterres antecipava como o grande multiplicador de crises e conflitos em torno de recursos naturais e bens essenciais – conduzindo a êxodos ainda mais generalizados.

Guterres percebeu portanto as limitações de uma interpretação formalista do estatuto de refugiado ou dos direitos de asilo e procurou ao máximo alargar as competências do ACNUR para proteger ‘refugiados de facto’. Afrontou com coragem o grande desafio que afligia a agência e que não era o do aumento exponencial de emigrantes sem destino, mas sim o facto de a maior parte dos "migrantes forçados" permanecer dentro dos estados que os ameaçam. Sem desprezar a gravidade da crise migratória ao largo do mediterrâneo, é um facto que as grandes crises derivadas da mobilidade forçada não envolvem actualmente qualquer passagem de fronteira. Sabemos hoje que existem cerca de 65.3 milhões de deslocados a nível mundial – mais do que a população da Franca ou do Reino Unido. Sabemos que deste número apenas 24,5 milhões cruzaram a fronteira de um ou mais países e que a grande maioria (40 milhões) são deslocados internos (IDPs). O papel de Guterres foi o de alertar para esta situação, o que não é de somenos. É claro que todos os países devem ajudar quem chega, mas a grande maioria de migrantes em necessidade nunca chega a sair do país de origem – e uma parte significativa deste número integra também os 10 milhões de apátridas a nível mundial. Em 2015 o ACNUR contabilizava 13,9 milhões de refugiados sob o seu mandato, o que é ao mesmo tempo um número demasiado alto para a capacidade de resposta de qualquer organização e manifestamente insuficiente por comparação com o número de deslocados internos e migrantes forçados.

Claro que houve uma redução dos refugiados com o estatuto reconhecido desde o pico da crise no início dos anos 90 mas os últimos anos têm sido marcados por novos aumentos, que também significam um esforço acrescido no sentido de reconhecer e atribuir esse estatuto legal, em si um sinal de que agência está a fazer o seu trabalho também nesse campo. Outros números mostram um sucesso, sempre relativo, do combate às condições precárias em que vivem muitos deles: 2015 registou o numero mais alto de pedidos de asilo (cerca de 2 milhões), em parte fruto do trabalho do agência. Claro que quanto maior o número de pedidos, maior será também o número de rejeições – e se a quantidade de refugiados recebidos em condições mínimas de assistência social nos estados tende a aumentar, os campos de refugiados também continuarão a ser uma realidade. Mas o ano último ano do seu mandato também mostrou melhorias homólogas significativas – retorno de 201,400 refugiados para os países de origem; instalação de mais de 100,000; naturalização de 32,000 em países terceiros. Apesar do aumento brutal do número de crianças desacompanhadas ou separadas da família por entre os refugiados, foi sob a chefia de Guterres que este número começou a ser contabilizado a par com um apelo para a situação insustentável de famílias inteiras que estão há mais de cinco anos a viver em campos sem o mínimo de condições.

Quanto ao ACNUR, e apesar das limitações, foi agilizado, está agora mais preparado tecnicamente, mais coordenado com outras agências e ONG, com mais recursos e mantimentos, presente em mais de 116 países, 24 dos quais com populações internamente deslocadas. Guterres teve também aqui um papel importante na canalização de fundos da administração para a acção, e na reforma da burocracia instalada de Genebra, que começa a ser reduzida e relocalizada para centros administrativos no resto do mundo, de molde a tornar a organização mais eficaz na resposta a crises locais.

Claro que a descoberta de uma nova vocação para o ACNUR projectou o seu potencial de ajuda humanitária – Guterres percebeu-o melhor do que os seus antecessores – mas também a tornou mais desafiante dos poderes instalados,. A sua acção já não consiste unicamente em persuadir os estados a receber e a proteger imigrantes particularmente vulneráveis; nem apenas na assistência ao retorno voluntário dos refugiados; nem tão-só na promoção de políticas de resettlement em países terceiros. Consiste, isso sim, no desenho e operacionalização de programas robustos de ajuda humanitária, aconselhamento legal e assistência médica; no suporte institucional e infra-estrutural; em políticas de transporte, educação e tradução.

É pois um erro pensar que a liderança da ONU significa um abandono destas preocupações em favor de outras. O que é facto é que ainda há muito por fazer e Guterres sabe-o porque esteve lá. Viu como as ações de repatriação em zonas de conflito como o Sudão ou o Afeganistão saíram goradas por causa da pobreza e dos conflitos endémicos. A responsabilidade do secretário-geral da ONU está portanto na sua memória e consiste em responder a um problema que o próprio, mais do que ninguém, deu a conhecer à humanidade: a de uma crise de refugiados com poucos refugiados de direito, e cuja deslocação não passou necessariamente pela migração internacional.

Investigador em Filosofia do Direito, Universidade de Uppsala

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