Terra de todos

Agora que o mundo enlouqueceu, António Guterres tem uma tarefa gigante

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Adriano Miranda

O avião fez-se à pista num aeroporto que em quase nada era um aeroporto. A porta da aeronave abriu-se e o bafo quente e húmido invadiu todos os centímetros de pele. Xanana e o seu povo esperavam Jorge Sampaio. Uma espera que durou décadas. Mas a hora chegou a transbordar de orgulho no país mais novo do mundo. O abraço entre os dois foi longo. Foi um abraço extenso que abraçou toda a ilha, ilha massacrada e agora libertada.

Eu, o Luciano Alvarez e o José Manuel Fernandes também transpirávamos a cada descoberta, a cada apontamento de reportagem. Na catedral de Díli, Luís Represas cantou "Ai Timor" e eu sentei-me a olhar em redor. Uma mulher magra, nova mas velha nas rugas, chorava. Ela sabia o que tinha sofrido. Apeteceu-me dizer-lhe que aquela terra também era minha. Que também tinha sofrido à distância. Que quem me fez, também tinha sofrido na ilha do crocodilo. Que o meu sangue era dali. Não disse nada e ouvi Represas ao longe, com a certeza de estar a viver um sonho e uma grande responsabilidade. Durante um mês percorremos a ilha. Fizemos jornalismo puro e duro. Contámos histórias de um país completamente destruído e roubado. Dili, Liquiçá, Lifau, Baucau, Aileu, Ermera, Aileu, Oe-kusi, Kraras, eram aldeias e cidades em que nada existia porque o pouco que havia desapareceu. Apenas os homens, as mulheres e as crianças ficaram no seu chão. Perdidas, sem trabalho nem escola, mas com a esperança na independência.

E porque o mundo tem a obrigação de contribuir, as Nações Unidas fizeram de Timor-Leste um exemplo. Fizeram de um monte de destroços um país digno.

Quando na televisão da cozinha a notícia da vitória de António Guterres na ONU me fez parar de mexer o arroz, recordei o seu empenho na devolução da dignidade aos timorenses. Depois, num acto de esforço de memória, lembrei-me da Tolerância Zero nas estradas portuguesas, do queijo Limiano no Orçamento de Estado, no acordo para a sustentabilidade da Segurança Social com os comunistas, do seu pedido de demissão a seguir a umas eleições autárquicas. Recordei como Guterres era afável e não me lembro se alguma vez se gritou nas ruas de Lisboa "Governo para a rua!"

Agora que o mundo enlouqueceu, António Guterres tem uma tarefa gigante. Existem milhões de pobres, existem refugiados desesperados, existem bombas que caiem do céu todos os dias, existem novos bárbaros, existem ditadores, existem corruptos e existem imensos Trump’s. Não será fácil reunificar o mundo, mas é urgente que se tente. Como escreveu Tiago Moreira de Sá no Público, Guterres será “um engenheiro de pontes e não de muros”.

Num armário da sala da minha mãe está uma pequena caixa de porcelana. Tem lá dentro terra de Timor. Foi a seu pedido que a trouxe. Num cafezal em Ermera depositei a terra num tubo de plástico dos rolos fotográficos. Atravessou o mundo e foi das melhores lembranças que já ofereci à minha mãe. Naquela terra está a dor, a revolta, a luta e a esperança. E melhor, a conquista.

O mundo é, e será o que nós quisermos. Depende sempre das nossas conquistas.

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