É fresco. É biológico. E vai ter à tua porta

Francisco Fernandes trocou a construção pela agricultura biológica: vende cabazes de frescos, porta a porta, no Grande Porto. A agricultura sustentável e sem químicos é uma oportunidade, acredita.

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Hugo Santos Hugo Santos

As caixas de esferovite acumulam-se à entrada da estufa e estão cheias de pequenos rebentos verdes que um olhar destreinado não distingue: couve-flor, espinafres, couve-coração, brócolos e couve kale. Francisco Fernandes ainda não os consegue identificar, mas daqui a alguns meses talvez seja capaz de o fazer sem recorrer às etiquetas. O agricultor que nunca pensou vir a sê-lo dedica-se ao modo de produção biológico e à venda e entrega de cabazes em casa (ou no local de trabalho). É um negócio que, diz, tem muito por onde crescer — e a Bio Habitus, empresa que começou a idealizar há cinco anos, é a prova.

Em dia de semear os verdes que farão parte dos cabazes dos próximos meses, Francisco está na estufa desde o nascer do Sol. Gosta de passar pelo terreno, em Vila Nova de Gaia, todos os dias e controlar as fases da produção. Os pesticidas e produtos de síntese ficam fora do portão da quinta e o objectivo é produzir, de forma sustentável, quase tudo o que os cabazes incluem: hortícolas e frutas sempre da época, sem calibres para atingir ou pressa de crescer. “É tudo ao ritmo da natureza”, diz, enquanto faz uma visita pela terra. Há macieiras e pereiras com mais de 50 anos, desníveis acentuados perfeitos para diferentes culturas e até um moinho de água. Aqui, a 20 minutos do centro do Porto, o antigo especialista em higiene e segurança do trabalho sente-se realmente um agricultor.

O que Francisco, de 36 anos, não produz — ainda — é comprado a outros agricultores biológicos que foi conhecendo em feiras especializadas e nos vários cursos que frequentou antes de se iniciar no meio. Sabe o nome do produtor e a origem de todas as frutas e legumes que vende, apertou a mão aos agricultores a quem comprou maçã de Alcobaça, maracujás do Gerês, melão de Rio Maior ou batata-doce de Vagos. “Descubro malta da minha idade que também quis mudar de vida e pessoas mais velhas que se converteram ao biológico”, conta. “Revemo-nos uns nos outros e essa parte também é deliciosa.”

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A estufa da Bio Habitus tem 600 metros e daqui a alguns meses vai estar cheia de novos rebentos Hugo Santos

Os três hectares de terreno que o criador da Bio Habitus arrendou por 20 anos (“um casamento”, brinca) são uma parte bem pequena da superfície cultivada em agricultura biológica em Portugal. Em 2015, segundo dados da Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGDAR), o modo de produção biológico ocupava uma área de 239.864 hectares. Destes, “apenas 20% [era] destinada à produção de bens alimentares dirigidos ao consumo alimentar directo ou para transformação”. Em comunicado, a DGDAR não deixa dúvidas: “A superfície cultivada em agricultura biológica tem vindo a crescer de forma sustentada”. Em 2014, a superfície dedicada a este modo de produção ficava-se pelos 211.948 hectares. Se recuarmos 20 anos até 1994 encontramos números muito mais baixos (7.183 hectares).

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Francisco arrendou um terreno por 20 anos e está a começar a plantar hortícolas Hugo Santos

O agricultor que nos recebe numa estufa de 600 metros é apenas um entre os 3.876 produtores agrícolas biológicos registados na DGDAR em 2015. Para fazer parte deste grupo, Francisco e a Bio Habitus tiveram de passar por um processo de certificação. Segundo uma lista da entidade, actualizada em Agosto de 2016, são onze os organismos privados de controlo e certificação para o modo de produção biológico e para que um terreno agrícola convencional seja convertido e devidamente reconhecido como tal na DGDAR são necessários entre dois a três anos. As empresas de certificação recolhem amostras do solo e das culturas, que posteriormente são enviadas para laboratórios independentes europeus, fazem vistorias surpresa à exploração e podem exigir ver os cadernos de campo que cada agricultor biológico mantém e as sementes que pretende plantar. Se alguns terrenos precisam de dois a três anos para ficarem livres de fertilizantes químicos, outros há — como o que Francisco arrendou em Vila Nova de Gaia — que são mais rapidamente convertidos. Tudo depende do tipo de culturas que o solo recebe ao longo do tempo e dos vizinhos que calham em sorte. Quando usados indevidamente e sem controlo, produtos como fertilizantes e herbicidas infiltram-se nos solos e contaminam os mesmos durante anos.

Quem compra os cabazes biológicos da Bio Habitus? Francisco traça um perfil

Uma relação “de proximidade”

De acordo com a Federação Internacional de Agricultura Biológica, Portugal era, em 2014, o 8.º país do mundo com mais colheitas orgânicas e as vendas destes produtos representavam 21 milhões de euros. “Não é à toa que, nestes cincos anos, deu para perceber que é isto que quero fazer e é rentável, além de toda a satisfação que me dá”, acredita Francisco, que investiu apenas do próprio bolso para o estabelecimento da Bio Habitus. Trabalhava há 13 anos em construção e atingiu “muito rápido o topo da carreira”. Depois de pontes, estradas e barragens — em Portugal e em Angola —, o descontentamento instalou-se. Tinha sempre a mala pronta, pouco parava em casa, família e amigos só ao fim-de-semana. Faltava-lhe tempo, algo que, agora e em contacto com a terra, consegue gerir melhor. “Tenho tempo para estar com os meus clientes, fazer a feira [todos os sábados de manhã, no Parque da Cidade, no Porto], acompanhar a produção, descansar e ver os meus amigos.”

Este transmontano de Vinhais aponta o contacto com os clientes como um elemento fundamental da nova profissão. “A minha ideia sempre foi vender os produtos directamente ao consumidor final e combater o que já existe”, refere. Às terças e quartas-feiras conduz uma carrinha por freguesias de Vila Nova de Gaia, Porto e Matosinhos e segue uma lista de clientes que varia entre os 100 e os 150. Divide as entregas com um novo funcionário, que passou um mês a conhecer todos os clientes. É que Francisco trata todos pelo nome, sabe o que preferem, quem abre a porta àquela hora, o nome dos filhos. A relação é de “proximidade e confiança”, porta a porta. E a porta tanto pode ser a de casa como a do local de trabalho.

Na parte de trás da carrinha há caixotes de madeira reutilizados e sacos de juta desenhados por Francisco — o plástico foi abolido desde o início do projecto. Aproveita os momentos de trânsito para combinar as entregas, sempre de auricular no ouvido. A primeira é na Nomad, uma agência de viagens de aventura e expedições que aderiu ao cabaz de fruta com 35 peças, de cinco variedades, por 13 euros. A fruta é para ser consumida pelos funcionários, que também compram os cabazes semanais (de 10 e 15 euros) de hortícolas. É o caso de Filomena Mendes, para quem o sistema é uma ajuda em termos de organização familiar e até um incentivo para uma alimentação mais saudável, e Pedro Gonçalves. O sabor e a segurança de saber o que estão a comprar e a comer são as principais vantagens, mais importantes do que o preço dos produtos biológicos. “É um investimento em saúde”, acredita Pedro.

Mais uma curta viagem e outro cabaz para encher as prateleiras do frigorífico e a fruteira de uma cozinha. Rita Dixo, uma das responsáveis pela loja Coração Alecrim, também na Baixa do Porto, é cliente há quase dois anos. Filipa Alves, a sócia, falou-lhe na Bio Habitus e Rita até recomendou aos pais. “Os produtos rendem-me sempre. Prefiro dividir com a família a não comprar”, admite. Recebe o cabaz no trabalho ou em casa, mediante o horário, e vê na durabilidade das frutas e dos hortícolas a principal diferença face aos produtos de agricultura convencional. “Há alfaces que duram três semanas”, assegura, e a ementa familiar inclui mais receitas com legumes. Para Filipa, o sabor — sobretudo da fruta — é tudo. “Noto que já não consigo comprar fruta no supermercado, a banana da Madeira é a única excepção.”

Consumo biológico subiu 10,3%

Divulgado há dias, o mais recente estudo do Fórum do Consumo sobre comportamentos de consumo e sustentáveis — realizado em parceria com a Universidade Lusófona, o IADE – Creative University e a empresa de estudos de mercado GfK —, mostra um aumento de interesse pela origem dos produtos alimentares face a 2015. No ano passado, 27,4% dos cerca de 1200 inquiridos afirmou ter comprado comida biológica ou produzida em Portugal, nas duas semanas anteriores, “muitas vezes” e “sempre”. Já em 2016, esta percentagem subiu para 37,7 (um aumento de 10,3%) num universo idêntico. Os clientes da Bio Habitus são, na maioria, “jovens e pessoas conscientes com hábitos alimentares saudáveis”.

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Há quatro modalidades de cabazes, cujos preços começam nos 10 euros Hugo Santos

O presidente da Associação Portuguesa de Agricultura Biológica (Agrobio), Jaime Ferreira, valoriza esta tendência: “Algumas das maiores empresas que, em Portugal, produzem e vendem produtos biológicos aumentaram a sua facturação em 30%, só no primeiro semestre de 2016”. E isto, crê, “é um indicador do interesse do consumo destes produtos”. Faz falta mudar a mentalidade de quem produz. “Os consumidores preocupam-se, e muito, com a origem dos produtos” e a procura na Europa “é o dobro da oferta”. “Existe aqui uma oportunidade. Temos vantagens climáticas e seria muito interessante apostar na produção”, resume Jaime Ferreira. O presidente da Agrobio fez parte de um grupo de trabalho para a definição de uma estratégia nacional para a agricultura biológica, impulsionada pelo ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural. A consulta pública terminou a 30 de Setembro e os resultados devem ser apresentados ao Governo durante este mês de Outubro, explica, sob a forma de uma proposta para os próximos cinco anos.

O dono da Bio Habitus não recorreu a financiamentos externos mas reconhece a importância que uma estratégia governamental pode vir a ter. Enquanto atravessa a ponte Luís I em direcção a Vila Nova de Gaia para deixar mais um cabaz, Francisco desafia a Câmara Municipal do Porto: “Por que não criar uma feira 100% biológica no centro da cidade, como acontece, por exemplo, em Amesterdão?”. Estaciona a carrinha a poucos metros do Douro e faz um telefonema em vez de tocar à campainha: por já ser visita semanal em casa de Joana Adão, sabe que a filha pode estar a dormir. Carrega um cabaz personalizado que a jovem escolheu entre os produtos disponíveis e é recebido por Laura, que acordou e o espera de caracóis despenteados. “Sou obcecada pelas frutas e legumes da época e pela origem, quando não é português nem compro”, destaca a assistente de bordo. Francisco fecha a porta do prédio e lembra: “Quando comecei a vir a casa da Joana, a Laura ainda nem era nascida”.

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