Santo António de Nova Iorque

Já estava habituado a este género de unanimidade delirante nos jogos da selecção e nas aparições de Ronaldo. Mas com um político vivo acho que é a primeira vez.

Nós não temos meio termo, pois não? Uma pessoa põe-se a ler as notícias, as reportagens, os perfis e os artigos que foram escritos a propósito da vitória de António Guterres e fica um bocadinho confusa. Isto foi uma eleição ou uma canonização? Guterres é o sucessor de Ban Ki-moon, Kofi Annan e Boutros-Ghali ou é o quarto pastorinho de Fátima? Eu já estava habituado a este género de unanimidade delirante nos jogos da selecção nacional e nas aparições de Cristiano Ronaldo. Mas com um político vivo – alguns mortos, é certo, também ganham súbitas qualidades celestiais – acho que é a primeira vez. Meus senhores e minhas senhoras, que xaropada.

Não comecem já a bater, ok? Ainda há dois dias escrevi um texto, nesta mesma página, onde declarava a minha felicidade patriótica pela vitória de Guterres. Não estava a mentir. Não estava a fingir. Sim, fiquei contente por ele vir a ser o próximo secretário-geral das Nações Unidas, como qualquer português, com excepção de Mário David, o Miguel de Vasconcelos que se vendeu a Kristalina Georgieva. É verdade que o discurso de Guterres foi tão aborrecido em português como em inglês e em espanhol, mas até nisso senti algum conforto – eis que regressa a boa e velha picareta falante. Inteligente, fluente, certinho e chato, numa fusão cada vez mais perfeita entre a carreira política e a missão sacerdotal.

Como pai, tenho orgulho de poder apontar para a televisão e dizer aos meus filhos: “Vejam, meninos, este senhor nasceu em Lisboa, como vocês; estudou em Lisboa, como vocês; parte da sua família é da Beira Baixa, como a vossa; e agora ele é chefe das Nações Unidas, como um dia vocês também poderão ser, se saírem mais à vossa mãe do que ao vosso pai.” Percebo perfeitamente este tipo de sentimento e acreditem que o partilho, sem ironias. O que já não consigo perceber, por mais voltas que dê à moleirinha, é que as páginas dos jornais e as notícias da televisão se transformem num relambório onde toda a complexidade de uma personalidade como a de António Guterres seja terraplanada e silenciada, porque não vamos ser desagradáveis e interromper com uma pedrinha cinzenta a engrenagem da sua ascensão aos céus.

António Guterres foi primeiro-ministro durante sete anos e esteve durante quase duas décadas na primeira linha da vida pública portuguesa. Conhecemos as suas qualidades, que têm sido devidamente realçadas, mas também conhecemos os seus defeitos, que é como se se tivessem eclipsado. Parece que ao longo da vida a única pessoa que Guterres chamou para trabalhar ao seu lado foi Angelina Jolie. Não foi. Também chamou Armando Vara e José Sócrates. Tal como Cavaco chamou Duarte Lima ou Dias Loureiro. Foi padrinho de gente pouco recomendável, com quem conspirou, que usou e protegeu durante muito tempo. Isto não tem de ser sublinhado a caneta fluorescente, mas também não pode ser eliminado do seu percurso. Pelo contrário. O que eu quero é saber se o Guterres de 2016 é o mesmo de 1996. Saber de que forma dez anos na ACNUR mudaram a sua vida e a sua personalidade. Se continua indeciso e conciliador ou ficou mais decidido e interveniente após tudo aquilo que viu e ouviu nos lugares mais desolados do mundo. São estas questões que merecem ser respondidas, e isso pressupõe a espessura de um homem e não a estreiteza de um anjo. É sobre isto que um jornalismo que se quer adulto, e não provinciano, deve reflectir. Parem com as hagiografias. Portugal já tem um Santo António. Não precisa de outro.

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