M6 é “inviolável”, “comandante dos crentes” e garante de alguma moderação

As pressões externas já se faziam sentir em Marrocos antes das revoltas na Tunísia e do Egipto. Talvez por isso, o rei soube promover reformas sem perder o poder. De caminho, os islamistas chegaram ao Governo.

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Abdelilah Benkirane, primeiro-ministro e líder do PJD Fadel Sena/AFP

Mohammed VI foi um dos mais astutos líderes entre os muitos que do fim de 2010 ao Verão de 2011 se confrontaram com uma vaga de protestos inéditos no mundo árabe. O monarca marroquino foi duro e conciliador, cedeu (muito menos do que fez parecer) no que podia e esmagou opositores quando isso foi preciso.

Para muitos, a revolução tunisina não foi o início do que viria a chamar-se “Primavera árabe” – tudo começou meses antes, em Outubro de 2010, no acampamento popular de Gdeim Ikiz, arredores de El Aaiún, a capital do Sara Ocidental. O regime esperou um mês, enquanto o campo de protesto crescia; depois, decidiu esmagá-lo, matando (mais de dez mortos, quase 200 feridos) e prendendo todos os líderes de um movimento que pedia mais empregos e melhores condições de vida, ao mesmo tempo que expulsava jornalistas da antiga colónia espanhola (ocupada por Marrocos em 1975).

Em Março de 2011, pouco depois da queda de Ben Ali, na Tunísia, e da saída de cena de Hosni Mubarak, no Egipto, M6 (como é conhecido o rei que subiu ao trono em 1999, depois da morte do pai, Hassan II) anunciava uma reforma da Constituição, destinada a aplacar críticos internos e externos. Entretanto, nascera o Movimento 20 de Fevereiro, que ousou pedir reformas democráticas na rua (o objectivo era uma monarquia parlamentar).

Por um lado, M6 antecipou-se; por outro, a verdade é que o Movimento 20 de Fevereiro era fraco, comparado com os manifestantes tunisinos, egípcios, iemenitas ou sírios. E tendo alguma classe média, determinante noutros países, tinha muito pouca (o 20F ainda existe, apoia partidos minoritários de esquerda, mas nunca mais voltou a fazer uma grande demonstração de força). Alguns, sim, já saiam à rua porque queriam passar a participar no processo de decisão, tomar o poder depois de já terem dinheiro para mais do que sobreviver. Mas o discurso de 9 de Março, como ficou conhecido, terá sido mais motivado por factores externos – e provavelmente a evolução que a reforma constitucional trouxe até já estava prevista.

Estas reformas “são uma resposta à União Europeia” e ao Estatuto Avançado (relação mais próxima de um país com o bloco sem ser membro), que implicava contrapartidas, comentava na altura o politólogo Mohamed Darif. Foram, também, uma resposta a Washington. Como o rei não quis desfazer-se dos negócios (é um dos homens mais ricos do mundo e dono de empresas em situação de quase monopólio nas áreas mais importantes da economia) nem alargar liberdades, sobrava-lhe fazer alterações institucionais e caminhar para a regionalização e para algum tipo de autonomia (ainda hoje por alcançar) para o Sara. “O que interessa ao rei é o Sara. A estabilidade do próprio regime está ligada ao Sara”, insistia então Darif, numa série de conversas com o PÚBLICO.

Única autoridade religiosa

Em resumo, o que mudou com a nova Constituição, aprovada em referendo em Julho de 2011, foi que o primeiro-ministro passou a ser nomeado (como antes pelo monarca), mas agora entre o partido mais votado, ganhando poder para dissolver o Parlamento e presidir ao conselho de Governo, que delibera a política geral “antes da apresentação ao conselho de ministros, presidido pelo rei”. As nomeações de ministros e governadores cabem ao chefe de Governo (novo nome para o primeiro-ministro), mas o rei tem poder de veto.

Mohammed VI deixou de ser pessoa “sagrada”, como até aí, e passou a ser “inviolável” (“a integridade da pessoa do Rei não pode ser violada”, lê-se na Lei Fundamental). O rei continuou a ser “comandante dos Crentes” – o que equivale a dizer que é a única autoridade religiosa. Nesse papel, são pessoas por ele escolhidas que determinam quem pode liderar as orações nas mesquitas e que tipo de islão é aceitável. Em relação ao islamismo, as mudanças abriram ainda a porta à vitória do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD, islamista) nas legislativas do final de 2011.

O resultado foi histórico: o PJD é herdeiro de outras formações, mas existe enquanto tal apenas desde 1998; nunca um partido conservador islamista tinha vencido umas eleições. Isto só aconteceu porque estes islamistas são realmente moderados e, acima de tudo, defendem a monarquia. O resultado é que o rei, em vez de arriscar os processos de radicalização que normalmente surgem por resposta a um autoritarismo mais robusto (como o saudita, por exemplo), chama a si a oposição islamista e controla realmente os possíveis focos de radicalização.

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