O ódio, esse nosso velho inimigo

Mesmo quando o escondem, ressurge. Mas ninguém no mundo o tornou tão popular e patético como Lissauer.

Procurem-lhe outros atributos, que os há, mas numa guerra não faltam estes dois: insanidade e ódio. A primeira alimenta o segundo e aquele vale-se dela para alastrar sem explicações. Se Paul Valéry (1871-1945), com humor, definiu a guerra como “um massacre entre pessoas que não se conhecem para proveito de pessoas que se conhecem mas não se massacram”, convém acrescentar que esse massacre resulta tão mais eficaz quando temperado pelo ódio. O soldado desfaz o “inimigo” com maior ferocidade porque o culpa por estar ali: a guerra é sempre culpa do outro, do adversário. E odeia-o visceralmente por isso, facilitando o morticínio em massa. Nada disto é novo, aliás é velhíssimo, só que em matéria de guerras tudo o que aprendemos se torna inútil pela infinita estupidez de nelas se reincidir sem alertas do espírito nem remorsos.

Se procurarmos nos livros uma definição para ódio, leremos “aversão intensa”, “sentimento violento de aversão a alguém”, “paixão que leva a desejar a desgraça de alguém e a fazer-lhe ou tentar fazer-lhe mal”. Isso mesmo: paixão. Um sentimento impetuoso, impulsivo, intenso. Foi isso que moveu, há pouco mais de um século, um homem que ninguém diria fadado para tais arroubos. Chamava-se Ernst Lissauer (1882-1937), nascera em Berlim e era, no dizer de Stefan Zweig, que lhe dedica três das mais de 500 páginas do seu livro de memórias O Mundo de Ontem, talvez o “judeu mais prussiano ou prussianizado” que conhecera. Mas nada na sua aparência sugeria violência ou ódio: “Bojudo como uma pipa, rosto cordial assente sobre um queixo duplamente duplo, um homenzinho pachorrento, transbordante de vivacidade e de amor-próprio.” Ah, e apaixonado pela poesia, recitando de forma torrencial os seus versos.

Assim era Lissauer, segundo Zweig, que o conhecia bem. Só que a Alemanha entrou em guerra, na sangrenta e tresloucada carnificina de 1914-1918. E Lissauer, que nunca saíra da Alemanha nem falava qualquer outra língua senão o alemão, quis, patrioticamente, alistar-se. Zombaram dele e mandaram-no embora. Então, desejoso de servir a Alemanha fosse como fosse, escreveu Haßgesang gegen England, ou Canto de Ódio à Inglaterra. Termina assim: “Amamos como um só, odiamos como um só/ Temos um só e único inimigo: a Inglaterra”. Para enviar tropas para o matadouro, foi o delírio. O imperador condecorou-o, o poema saiu em todos os jornais, foi distribuído aos soldados, recitado nas escolas, musicado e cantado nas ruas. Os “70 milhões” de alemães invocados no poema sabiam-no de cor, suprema glória!

Só que a guerra, um dia, acabou. E o poema deixou de lhes ser útil: “Nunca renunciaremos ao nosso ódio”, berrava o orgulho de Lissauer. Nunca? Agora a Alemanha queria voltar a fazer negócios com a Inglaterra, não se podia dar ao luxo de odiá-la. Assim, inventaram um novo culpado: Lissauer. Renegaram-no. Não voltaram a publicar-lhe poemas, marginalizaram-no na sociedade (inclusive os seus antigos amigos), exilaram-no sem exílio. Ele “inventara” o ódio, morreria com ele! Até que Hitler o deportou. Morreu em Viena, abandonado. A Alemanha haveria de ressuscitar o seu ódio nos anos 1930, depois de o esconder atrás de um homenzinho bojudo.

Jornalista, nuno.pacheco@publico.pt

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