A impunidade do “taxismo-leninismo”

1. Do alto da sua cátedra em má-criação e em cima de um indisfarçável sentimento de impunidade, o presidente da Antral reagiu às medidas anunciadas esta semana para a legalização da plataforma Uber e Cabify com uma ameaça à moda antiga: “Porrada não vai faltar”. Fosse o país um pouco mais exigente e houvesse um Governo mais empenhado na defesa de um limiar mínimo de moralidade pública e Florêncio Almeida teria de responder na justiça pelo incitamento à violência. Mas como em torno da polémica táxis/Uber se criou um clima de intimidação na qual se toleram agressões, insultos ou a projecção de dejectos de animais para concorrentes indesejáveis, tudo é possível. O “taxismo-leninismo” que durante anos nos obrigou a viajar em veículos sujos, com música pimba aos berros entrecortada com discursos xenófobos ou quase fascistas tornou-se um poder real neste país. Eles podem ameaçar em público o mundo e os seus concorrentes com “porrada” que nada lhes parece acontecer. A não ser a depreciação do escasso capital de simpatia que ainda existe para com a profissão.

Nunca nada justificou a violência de muitos taxistas para com os que encontraram na Uber uma solução para as suas carências ou os seus desejos profissionais. A sua reacção serviu até para camuflar a razão de princípio que lhes assistia: era intolerável que uma classe profissional tivesse de concorrer no mercado com uma plataforma que estava isenta da regulamentação burocrática ou das exigências de segurança que são impostas aos táxis. Não fazia sentido que uma actividade embrulhada em requerimentos de um estado regulador e paternalista fosse obrigada a expor-se à concorrência com uma plataforma digital sem qualquer tipo de controlo público. Esperava-se por isso que as alterações anunciadas esta semana pelo Governo bastassem para recolocar a polémica na área da sensatez. Porque o plano desenhado pelo secretário de Estado José Mendes e pelo ministro João Pedro Matos Fernandes é um exercício de boa vontade, de equilíbrio e de razoabilidade. Se recusa parar a marcha do tempo reconhecendo à Uber ou à Cabify o direito de existir, recusa ao mesmo tempo conceder a estas plataformas o estatuto e os privilégios de serviço público que o sector do táxi já hoje dispõe.

Ficou assim garantido que, sim, a Uber pode operar, mas vai ter de trabalhar em condições mais desfavoráveis do que as dos táxis. Os seus operadores não vão dispor dos privilégios fiscais para comprarem carro novo, não vão poder deduzir o IVA das despesas com manutenção ou com os combustíveis e não vão estar isentos do imposto municipal sobre veículos. Os motoristas vão ter de provar a sua idoneidade. Os seus carros não poderão ter mais de sete anos e vão ser sujeitos aos mesmos seguros dos que se exigem ao táxi. E, suprema concessão, não poderão circular nas faixas BUS nem podem apanhar um passageiro pelo caminho. O que quer isto dizer? Que o Governo se empenhou em conceder aos táxis uma oportunidade para poderem adaptar-se ao novo mundo da economia conservando uma ligeira vantagem competitiva sobre a Uber.  

Os planos do Governo, porém, não funcionaram porque não podiam funcionar nunca. Os representantes dos taxistas haveriam sempre de se contorcer para encontrar uma vírgula capaz de expressar a sua verdadeira e única exigência neste processo: a proibição da Uber. A prova é que depois da abertura do Governo não se viu por parte dos taxistas qualquer vontade real de negociar um acordo justo. Pelo contrário. A arrogância dos taxistas resume o diálogo a uma estratégia: a promessa de “porrada”.

Ver-se-á se a ameaça de Florêncio Almeida não passou de um desabafo irreflectido ou se vai servir de guia de marcha para a ala radical do “taxismo-leninismo”. A história recente justifica os piores receios. Em risco está a criação de um clima de intimidação tal que leve o cidadão comum a ter medo de entrar num Uber – ou até de apanhar um familiar numa estação de caminho-de-ferro no seu próprio carro. Para evitarmos esse cenário absurdo, resta uma via: o Governo e os tribunais tomarem a palavra. E dizerem que o país não é uma praça de táxis onde impera a soberba, a má-educação e a impunidade. Quem nos ameaça com “porrada” tem de saber, e quiçá sentir na pele, que num país decente a violência é um exclusivo do Estado. 

2. Alguns intelectuais da capital não resistem ao disparate sempre que no ar há um ténue perfume de descentralização cultural. A história repete-se com a colecção Miró, cuja instalação no Porto levou Nuno Vassallo Silva, director-adjunto do Museu Gulbenkian a falar de uma “visão provinciana” que denuncia a tentação do poder político em seguir “os caminhos mais fáceis e atractivos”. Bom, que se saiba, “os caminhos mais fáceis e atractivos” são os que levam ao umbigo dos agentes culturais lisboetas, uma constatação do corporativismo da elite que não vale mais do que um vintém. Mas, agora, dizer que a instalação de uma colecção de arte do Estado fora de Lisboa se sustenta numa “visão provinciana” da cultura já expressa com exuberante luminosidade o que pensam e que ideia projectam estes cérebros sobre o país. Para a oligarquia cultural lisboeta, na qual o responsável pelo museu Gulbenkian se inclui, o mundo só existe se rodar em torno da pequena corte do Terreiro do Paço. Ó doutor Nuno Vassallo Silva, haverá algo mais provinciano do que essa mundivisão?

3. O veto do Presidente da República ao projecto de decreto-lei que obrigava a banca a avisar o fisco de todos os saldos superiores a 50 mil euros é um notável raspanete ao Governo pela “patente inoportunidade política” do diploma. A argumentação de Marcelo Rebelo de Sousa é demolidora. O projecto não faz sentido porque não resulta de nenhuma vinculação externa, é desproporcional, não atende à situação financeira e económica do país, sacrifica direitos fundamentais, é desnecessário porque o fisco já tem meios para consultar os bancos em casos de suspeita de fraude ou evasão fiscal e, principalmente, é inoportuno na actual conjuntura política. Convém dar devida nota desta formulação. O que o Presidente diz a Costa é que a ofensiva sobre quem tem algum património, seja através de impostos, seja através da devassa do segredo fiscal, é um erro. É um devaneio “ideológico” quando o que se precisa é de “realismo”, para usar a dicotomia usada por Marcelo esta semana em Nova Iorque. De resto, fazer de todos os que têm 50 mil euros alvo do voyeurismo do fisco era uma cedência dos princípios fundamentais que garantem a cada um de nós uma vida fora da égide do Estado. E não venham dizer que esta recusa em fundir a sociedade e o Estado numa amálgama colada pela ideologia é um valor da direita ou dos neoliberais. Não é. Há linhas vermelhas que o Estado não pode pisar. Como as do direito de cada um de nós ao sigilo bancário e à presunção de inocência em matérias fiscais.

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