A tarefa do crítico

Walter Benjamin, que se imaginou o crítico literário mais importante da literatura alemã, concebeu a crítica como um género filosófico e o crítico como um alquimista.

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Walter Benjamin imaginou-se como o crítico literário mais importante da literatura alemã

No sexto volume das Obras Escolhidas de Walter Benjamin, Ensaios Sobre a Literatura, João Barrento reuniu um conjunto de textos importantes e representativos da actividade do filósofo alemão enquanto crítico literário. O livro organiza-se em duas secções: uma sobre autores de língua alemã (Hölderlin, Goethe, George, Walser, Brecht, Kraus e Kafka) e outra sobre autores franceses (o surrealismo, Proust, Valéry). Numa carta ao seu amigo Scholem, Benjamin declarou a ambição de se tornar “o primeiro crítico de literatura alemã”, acrescentando que tal objectivo estava confrontado com uma dificuldade: “Há mais de cinquenta anos que a crítica, na Alemanha, não é considerada um género sério”. Afirmar uma posição cimeira enquanto crítico significou então, para ele,  recriar a crítica como género e como uma disciplina cognitiva central.

   O extenso ensaio sobre As Afinidades Electivas, de Goethe, escrito em 1922, começa precisamente com uma densa reflexão teórica sobre o trabalho do crítico literário. A sua ideia de crítica consiste em iluminar a obra a partir da própria obra, e pode ser definida justamente como uma crítica filosófica. A relação entre filosofia e crítica funda-se numa concepção da obra como forma em que surge “o ideal do problema da filosofia”. E se, por um lado, é de facto a elaboração filosófica a orientar a crítica, por outro, é o confronto com os próprios textos a sugerir e a revelar as categorias filosóficas adequadas à sua interpretação. Na abertura do ensaio sobre As Afinidades Electivas, Benjamin estabelece uma distinção metodológica fundamental entre comentário e crítica: “A crítica busca o conteúdo de verdade de uma obra de arte; o comentário busca o seu conteúdo material objectivo “.

Segundo ele, a tradição da crítica literária caracteriza-se por uma atenção filológica ao texto que é da ordem do comentário. Trata-se de uma aproximação que não alcança jamais o conteúdo de verdade do texto comentado, fica-se pelos elementos objectivos, os elementos reais do texto que o compõem e fazem dele uma obra de época. E esses elementos são tanto mais notórios e significativos quanto mais o tempo passa (a concepção de que o conteúdo material está ligado à sobrevivência da obra já tinha sido exposta por Benjamin no seu ensaio sobre a tarefa do tradutor). Essas coisas, no mundo onde elas surgem, não são jamais experimentadas quanto ao seu sentido, não são objecto de uma verdadeira experiência. A ideia teórica subentendida em todas as análises literárias de Benjamin é a de que os textos tornam possível uma verdadeira experiência, um acesso ao teor de verdade das coisas.  

   Encontramos ainda neste ensaio uma argumentação polémica contra a operação crítico-interpretativa de um estudioso de Goethe, Friedrich Gundolf, que fazia parte do círculo do poeta Stefan George. Benjamin refuta violentamente a tentativa de Gundolf de expor a vida de Goethe como uma vida mítica, uma tentativa que parte da concepção do poeta típica de George, o poeta como profeta e herói mítico, a quem é confiada a obra por mandato divino. Assim, toda a argumentação benjaminiana contra Gundolf é a de que ele cai numa perniciosa confusão, comum a toda a crítica biográfica: a confusão entre mito e verdade, entre a vida e a obra.

    A relação entre vida e poesia constitui precisamente o centro do ensaio que abre este volume, sobre dois poemas de Hölderlin, Coragem de poeta e Timidez. Nesse texto escrito em 1914-1915 (portanto, num momento em não tinha ainda iniciado a sua actividade de crítico e estava voltado para questões filosóficas de carácter metafísico), Benjamin põe em confronto o poema Coragem do Poeta (Dichtermut) com uma segunda versão desse mesmo poema, Timidez (Blödigkeit). É neste ensaio que surge pela primeira vez a noção de que a literatura contém uma forma de verdade, e é aqui que Benjamin começou a explorar a relação entre linguagem poética e problemas epistemológicos.  

No centro da sua análise dos dois poemas de Hölderlin encontramos um conceito fundamental de das Gedichtete (tradução literal: o poetizado), que João Barrento traduziu  por “a matéria densa do poema”, explicando a sua opção numa nota (em França, o filósofo Philippe Lacou-Labarthe, num estudo magistral sobre este texto bastante hermético de Benjamin, traduz das Gedichtete por dictamen, servindo-se assim da afinidade etimológica entre o alemão Dichten, poetar, e o latim dictare; esta tradução é, em si mesma, uma peça dotada de um alcance teórico e analítico, no estudo de Lacoue-Labarthe). Com esse conceito, Benjamin visa precisamente explicar a “passagem da unidade funcional da vida para a unidade funcional da poesia”; é o a priori da poesia, enquanto unidade sintética de forma e conteúdo, é a “forma interna”, aquilo que Goethe definia como Gehalt.

Com esse conceito, Benjamin desenvolve a ideia de que a relação da arte com a vida não é uma relação imediata, tudo tem de passar por esse conceito-limite, das Gedichtete, que é o esquema mediante o qual a vida se torna forma na poesia. Estamos aqui, portanto, longe das premissas da interpretação biografista. E surge assim uma ideia fundamental: quanto mais o poema procura converter a unidade da vida na unidade da arte sem transformá-la, mais ele se revela inepto e medíocre. A superioridade que Benjamin atribui à segunda versão do poema de Hölderlin em relação à primeira reside precisamente na superação da passagem imediata da vida à poesia (criando entre as duas nexos funcionais que não são redutíveis a nenhum biografismo), assim como da superação do classicismo, do princípio grego da forma.

   Este conceito central no texto onde analisa os dois poemas de Hölderlin reenvia para um outro – fundamental, na crítica e na estética benjaminianas – que surge no ensaio sobre As Afinidades Electivas: o conceito de inexpressivo (Ausdruckslose), que Benjamim relaciona com a noção de cesura de que Hölderlin fala nas suas notas sobre a tragédia grega. O inexpressivo é o que imprime uma paragem, uma interrupção da aparência de completude, de beleza e de harmonia da obra. O inexpressivo é aquilo que na obra está em antítese relativamente à aparência da falsa totalidade e representa uma “potência crítica”. Com a noção de inexpressivo, Benjamin não só se afasta de uma concepção classicista da obra (e das suas inócuas declinações moderna), como refuta toda uma concepção teológica da arte e da literatura como “criação”.

O único criador é Deus, que faz nascer o mundo do nada. A arte, diz Benjamim, não nasce do nada, mas do caos, converte-o em forma. E é a forma artística que encanta por um instante o caos no mundo.  

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