Boris morreu depois de meses à fome. Lei contra maus tratos não lhe serviu de nada

Faz este sábado dois anos que abandono e maus tratos de animais passaram a ser crime. Partidos não se entendem para colmatarem insuficiências da lei.

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Advogados consideram que legislação “foi feita de forma apressada e não cumpre objectivos” PAULO PIMENTA

Era um boxer já não muito novo, que morava num quintal da Penha de França, em Lisboa. Apesar de ter dono, estava há meses à fome quando a polícia foi chamada. O caso serve para a provedora municipal dos animais de Lisboa, Inês Real, ilustrar as deficiências na aplicação da lei pela qual maltratar os animais de companhia passou a ser crime. “O detentor de Boris não abria a porta. Pediu-se ao tribunal um mandado judicial com carácter de urgência, para que as autoridades pudessem entrar no quintal, que nunca chegou”. Quando finalmente Boris foi levado para o hospital veterinário, na Primavera passada, era tarde demais: “Não resistiu à fome de que era vítima há meses e acabou por morrer. Como noutros casos, deparámo-nos com um muro de burocracia”. O caso está sob investigação.

Aprovada faz este sábado dois anos, a lei foi, sobretudo um passo simbólico, considera a provedora. Mas o facto de não proteger os restantes animais – os usados nos circos, mas também os cavalos e todos os outros usados na pecuária, por exemplo – é um dos motivos para ser considerada de forma quase unânime uma lei frágil e, nalguns aspectos, pouco operacional. Devia ter sido revista no final da última sessão legislativa, mas os partidos que apresentaram projectos nesse sentido na Assembleia da República continuam, neste momento, sem se entender sobre até onde estender o regime de protecção legal dos chamados seres irracionais. Pior: as propostas de melhoria que produziram até ao momento foram alvo de fortes críticas quer pelos conselhos superiores da magistratura e do ministério público, quer pela Ordem dos Advogados.

“No caso de condenação de alguém pelo crime de maus tratos ou de abandono ao abrigo do actual regime legal, qualquer advogado de defesa pode recorrer para o Tribunal Constitucional, uma vez que os direitos dos animais não se encontram inscritos na Constituição”, antecipa Sandra Horta, responsável pela organização de um debate sobre o tema esta terça-feira, em Lisboa, na sede da Ordem. “Todos os países que legislam em condições têm garantido na Constituição o bem estar animal. Esta lei foi feita de forma apressada e não está a cumprir os seus objectivos”.

Indício disso são as estatísticas do Ministério Público: nos primeiros oito meses de 2016 findaram 922 inquéritos por maus tratos ou abandono, mas só 37 deles redundaram em acusação, havendo ainda 17 com requerimento para aplicação de pena em processo sumaríssimo. Mais de oito centenas foram arquivados. O Ministério da Justiça não conseguiu dizer ao PÚBLICO quantas condenações houve em tribunal – no ano passado tinham sido apenas três.

Em Maio passado, uma juíza do Tribunal de Setúbal declarou-se impotente para punir devidamente o abate de um cão a tiro por um carpinteiro que se queixava de o animal vadio lhe comer as galinhas. Existe um vazio legal que não permite condenar quem abate injustificada e intencionalmente um animal de companhia – embora a lei puna os culpados de meros maus tratos por negligência. “O legislador esqueceu-se” de que os animais de companhia podem ser mortos de propósito, lamentou a magistrada, que ainda assim aplicou ao autor dos tiros uma multa por ter causado sofrimento ao animal. “A lei não funciona e os juristas que têm trabalhado com ela vêem-se enredados em problemas que não deviam existir”, aponta Sandra Horta, defendendo a criação de um estatuto do animal que reúna a legislação avulsa que foi sendo produzida sobre o tema.

Incongruências legais

No Departamento de Investigação e Acção Penal de Setúbal, a procuradora Ana Rita Andrade tem-se deparado com algumas incongruências legais, mas não é a elas que aponta as baterias. “Toda a gente já conhece essas lacunas, conto que o legislador as venha a colmatar. Mas para além disso quem está no terreno confronta-se com problemas de falta de meios” difícil de ultrapassar. Médicos, por exemplo: “Só os veterinários municipais nos podem prestar assessoria. Mas eles não fazem mais porque não podem”. Arranjar provas para levar um caso a tribunal significa, com frequência, conseguir que alguém faça as perícias aos animais que comprovem os maus tratos. Se não há quem as execute o caso pode cair por terra.

“Não existe uma máquina montada para acorrer a casos de emergência imediata, como acontece por exemplo com as vítimas de violência doméstica”, assinala a magistrada, corroborando o diagnóstico da provedora do animal de Lisboa. Uma matilha de 55 cães foi apreendida em Grândola em Abril passado, em estado febril e de magreza extrema. Cinco dos animais que se encontravam em piores condições foram conduzidos ao veterinário – alguns deles acabariam por morrer –, mas à falta de melhor solução os restantes continuaram na posse do proprietário, apesar de este ter sido constituído arguido. Foi nomeado fiel depositário dos bichos, um estatuto que o obriga a cuidar das suas próprias vítimas, por não existir nenhum local nas redondezas com condições para as acolher.

A única coisa sobre a qual os partidos com assento parlamentar parecem estar prestes a entenderem-se é alterar o estatuto do animal, que em breve deixará de ser considerado uma coisa para beneficiar de um estatuto intermédio entre os objectos e as pessoas. Mas isso não deverá ter grandes efeitos práticos no dia-a-dia. Por enquanto, “se eu destruir um telemóvel alheio arrisco-me a uma pena de cadeia até três anos, por crime de dano. Mas a moldura penal do crime de maus tratos de animais na sua forma agravada só vai até aos dois anos de prisão”, critica Inês Real, para quem as dificuldades dos partidos em chegar a um consenso só pode ficar a dever-se a “lobbies dos interesses económicos”, nomeadamente os ligados à exploração pecuária.

Outro exemplo que quem lida com este tipo de fenómenos considera absurdo: abandonar um animal de estimação só é punível se o bicho chegar a correr perigo efectivo. Se for deixado à porta de uma associação de animais que o venha a recolher, por exemplo, à luz da lei em vigor o dono já não incorre em crime algum. Nem se o largar na auto-estrada e alguém o levar logo a seguir consigo para casa.

“A lei tem dificuldades na sua aplicação”, diz também o director-geral de veterinária, Fernando Bernardo, reconhecendo ser ténue, nalguns casos, a linha que divide os maus tratos de outras situações. Ensinar um animal a fazer habilidades é maltratá-lo? E castrá-lo? “Temos imensas situações de animais acorrentados. Mas ainda não sabemos se os tribunais as considerarão maus tratos”, descreve a provedora. “A sociedade está um passo à frente do legislador”, resume Inês Real. “Os direitos dos animais estão na moda. E as modas e as pressas nem sempre dão bom resultado”, conclui a representante da Ordem dos Advogados. 

Sintoma de violência doméstica

Os maus tratos perpetrados contra animais podem ser sintoma de outros tipos de agressividade, como a violência doméstica. Não são raros os relatos, de mulheres cujos maridos usaram os animais de estimação para impedir que elas os abandonassem, ou como forma de as magoar. “Pendurou os animais de estimação da minha filha do lado de fora da janela e ameaçou deixá-los cair se eu não regressasse a casa”, conta uma delas num trabalho efectuado no Reino Unido sobre as relações perigosas entre abuso de crianças, maus tratos de animais e violência doméstica. “O meu ex-marido ameaçou matar todos os nossos animais se nos fossemos embora. Num ataque de fúria bateu na cadeia do meu filho, que estava só a tentar proteger-nos. Tentei que parasse e começou a bater-me a mim”, refere outra vítima. 

Uma tese de doutoramento apresentada na Universidade Fernando Pessoa no ano passado por Luisa Mascoli explica que a correlação entre violência doméstica e crueldade para com os animais é cada vez mais patente para a comunidade científica que se debruça sobre o fenómeno: “Os maus tratos ou ameaças contra animais de estimação podem ser utilizados pelos ofensores como forma de controlo das vítimas. Os tipos mais comuns de crueldade contra animais incluem tortura, tiros, facadas, afogamento, queimar, incendiar e partir ossos”. Porque quando se lida com a violência intrafamiliar, “estamos claramente a lidar com questões de poder e de controlo”. Questionados sobre o porquê do seu comportamento, há agressores que respondem “Porque posso!”, descreve a autora.

Daí ser importante que nas casas-abrigo para vítimas de violência doméstica fosse permitida a permanência de animais de estimação, como defende a provedora municipal dos animais de Lisboa, Inês Real: “Há pessoas que não chegam a sair da casa onde moram porque não querem deixar os animais para trás”. Mas neste momento, lamenta, nenhuma casa-abrigo os autoriza. 

Nem porcos nem galinhas podem fazer companhia

Nem porcos, nem galos nem galinhas, e muito menos patos ou perús. Quanto aos coelhos e ratazanas, depende: se não forem usados para a produção de alimentos, podem continuar a ser considerados animais de companhia. É o que diz um extenso regulamento aprovado pela União Europeia e que Portugal, tal como os restantes países, terá de transpor para a legislação nacional até 2021.

Por enquanto a Europa ainda não limitou o número de animais de companhia que os particulares podem albergar em casa, como de resto chegou a tentar fazer o anterior Governo, mas o director-geral de Veterinária, Fernando Bernardo, pensa que não tardará muito até isso acontecer – muito embora depois se torne impossível fiscalizar quem cumpre ou não as limitações impostas, como reconhece.

O regulamento em causa não diz respeito ao bem-estar animal, mas sim às doenças animais transmissíveis. E limita, por exemplo, a cinco o número de animais que o dono pode transportar consigo em viagem entre Estados-membros, ou quando vem de fora da UE – sejam periquitos, peixes ou dobermans. Objectivo? “Assegurar que os animais de companhia não constituem um risco significativo para a propagação de doenças animais transmissíveis”. Uma das raras excepções são as viagens destinadas a participar em concursos de animais, exposições ou eventos desportivos.

Mas o que inquieta Fernando Bernardo neste regulamento nem é isso, e sim a disposição que abre a possibilidade de retirar aos veterinários a exclusividade em certas actividades relacionadas com a aquicultura, como a administração de medicamentos destinados a erradicar doenças. “É muito preocupante”, assinala. Por outro lado, quem tiver dois animais que procriem, ainda que uma só vez, passa, automaticamente, a ter estatuto de criador, explica o mesmo responsável. 

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