“Meu pai não pode ler este poema”

Comemorando os 500 anos da obra de Thomas More, a Utopia é, este ano, o tema geral do Folio, festival literário de Óbidos. Cada conferência interpretou a ideia à sua maneira, mais política ou mais quimérica. Conversámos sobre utopia e literatura com três convidados do festival.

Foto
O Folio decorre até domingo Nuno Ferreira Santos

A vida de Luiz Ruffato mudou depois de um discurso. Aconteceu na Feira do Livro de Frankfurt de 2013, em que o Brasil era o país convidado. “Nascemos sob a égide de um genocídio. Dos 4 milhões de índios que existiam em 1500, restam 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis”, disse Ruffato logo nos primeiros minutos do seu discurso na cerimónia inaugural. E continuou, com críticas ao racismo, sexismo, homofobia, capitalismo selvagem, hipocrisia do Brasil. Nunca mais foi convidado para representar o seu país no estrangeiro. Tornou-se uma espécie de persona non grata literária no Brasil, pelo menos nos circuitos oficiais.

Até hoje, Ruffato, o escritor multi-premiado, de 55 anos, nascido em Minas Gerais, filho de um pipoqueiro e  de uma lavadeira, não mudou de opinião. “No Brasil ninguém lê. Nem mesmo os escritores”, disse ele ao PÚBLICO num café de Óbidos, onde veio participar no Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos. “A literatura, a arte, obriga à empatia, a colocarmo-nos no lugar do outro. O Brasil é individualista, não tem uma ideia de comunidade. É um país violento, nasceu de uma matança. Teve a pior escravidão, e ditaduras. Não é sequer um país latino-americano, tem vocação imperialista, e é temido pelos países vizinhos”.

A utopia da literatura é a crença de que a educação pode transformar um país, concluiu. Mais do que abordar os temas concretos, da violência, da injustiça ou da pobreza, a literatura actua pelo seu simples acesso às pessoas. Já que, quanto aos temas, ela própria é incapaz de lá chegar.

“Eu fui o primeiro escritor brasileiro a falar da classe média baixa”, disse Ruffato, referindo-se à série de romances Inferno Provisório, que publicou entre 2005 e 2011. “Mas não escrevo sobre as favelas. Seria macaquear essa realidade, que não conheço suficientemente bem”.

Ninguém escreve sobre a pobreza, ou porque é oriundo das classes altas e médias, ou porque, “vindo de baixo, tem vergonha dessas origens, e não quer voltar lá. Os escritores brasileiros são cobardes, não abdicam dos pequenos benefícios”.

Foto
Luiz Ruffato Adriana Vichi

Há uma recentíssima literatura marginal, da periferia, diz Ruffato, inserida no movimento hip-hop, mas é “demasiado raivosa, panfletária. Fala da periferia a partir da periferia. É um movimento recente, e ainda não é importante literariamente”.

O mexicano Juan Pablo Villalobos, nascido em 1973 em Guadalajara, tem, ou pode ter, uma visão diferente. Para ele, “a literatura é utopia feita realidade. É uma aspiração de liberdade, um dos poucos lugares onde ela é possível”.

Villalobos chegou a ser considerado um dos representantes da “narcoliteratura”, corrente onde o narcotráfico no México ou Colômbia é o tema dominante, por causa do seu livro Festa no Covil (o único publicado em Portugal). Rejeita a classificação, mas admite que os seus romances são sobre a realidade que o rodeia. “Toda a escrita é política”, disse ele. “Mesmo a que foge da realidade”.

Villalobos escreveu várias obras sobre o México, e agora, que vive em Barcelona, depois de ter morado no Brasil, está interessado noutros temas. “No turismo, e na forma como ele está a transformar as cidades e o espaço público, por exemplo em Barcelona. Esse espaço público, que não existe na América Latina, é o espaço onde os cidadãos se podem manifestar, exprimir a revolta. O seu desaparecimento à conta do turismo é um facto político. É o golpe de mestre do sistema”.

Foto
Juan Pablo Villalobos Walter Craveiro

Este é o tema do próximo livro. “Tenho necessidade de falar da minha realidade e da realidade do meu tempo. De repente, senti que já não faz sentido escrever sobre o México, porque já não estou lá”.

Os livros vão reflectindo a vida do escritor, o que significa a sua liberdade, diz Villalobos, porque pode problematizar e idealizar essa realidade. Mas também pode ser uma prisão, se a sua vida se torna demasiado em “vida de escritor”, viajando para conferências e festivais literários.

Outra armadilha é a de, por via das entrevistas e de toda a actividade promocional para-literária que é obrigado a manter, o escritor se transformar em comentador político. “A política está nos meus livros, mas quando me pedem para comentar a política, sinto-me agredido. Já quando percebo que estou num lugar onde não querem que fale de política, aí gosto de ser político. Pode ser uma reacção um pouco infantil. Mas há lugares onde querem banalizar a literatura. Que o escritor seja um académico, que fala apenas do seu trabalho, ou então que seja apenas simpático e bonito, e entre na lógica do consumo. Tentam transformar a literatura em mero entretenimento, e ela não é isso. O lugar da literatura não é o mesmo do da novela das 9. Nem a sua função é a de um best-seller, onde o leitor vai confirmar o que já sabe. A literatura deve mostrar coisas novas, é um meio para novas possibilidades”.

Para Villalobos, há um lado funcional na literatura. Não escreve pensando concretamente num destinatário, mas sabe desde o início que livro quer escrever, e tenta não se desviar do objectivo. “Escrevo os livros que eu gostaria de ler. E às vezes perde-se isso de vista. O processo de escrita é tão complexo, que a certo momento posso descobrir que estou a escrever um livro de que não gosto. Quando estou na dúvida, paro, dirijo-me a uma estante que tenho com os meus livros favoritos, e leio algumas páginas, para me lembrar do que gosto, e que tipos de livros quero escrever”.

Foto
Eucanaã Ferraz Joana Freitas

Escrever com destinatário não parece próprio do escritor. “Só dos que escrevem mal”, disse o poeta Eucanaã Ferraz, que nasceu em 1961 no Rio de Janeiro e acaba de ver publicada a sua obra completa em Portugal, na colecção Plural, da Imprensa Nacional Casa da Moeda.

“O poema precisa de ser lido por alguém. Ou dito por alguém. Não existe sem isso. Mas quando escrevemos, não tornamos uma frase mais clara, para ser entendida. Nalgumas situações, podemos procurar uma poesia mais transitiva, mais de comunicação. O João Cabral de Melo Neto escreveu Morte e Vida Severina, para ser lido pelos trabalhadores do canavial. É um poema complicadíssimo, sofisticadíssimo, que provavelmente nenhum trabalhador do canavial compreenderia. Mas, por exemplo, há dois poetas portugueses que eu amo, Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andresen que são poetas fáceis. Aquilo é elaboradíssimo, mas tem um nível qualquer de comunicação... um elo muito rápido. No entanto tenho a certeza de que nem o Eugénio nem a Sophia pensavam: vou escrever um poema fácil, para ser lido e entendido”.

A dimensão utópica na poesia existe, no sentido político e quimérico, uma vez que “o poeta vive com os dois pés na terra”, admite Eucanaã. “A preocupação de um poeta não tem de ser a de tentar melhorar a realidade. A poesia já nasce da insatisfação com a realidade. A maneira de o poeta mudar o mundo é refazendo o mundo pela linguagem. Ou seja, o mundo humano é um mundo de linguagem, por isso, quando mudamos a linguagem, mudamos o mundo. Toda a poesia é em si mesma um gesto utópico, já que é recriação do mundo, embora não proponha um programa”.

Para responder a uma pergunta sobre a eventual responsabilidade do poeta, ser particularmente sensível, em denunciar as injustiças do mundo, Eucanaã sugeriu: “Posso ler um poema?”

Era um texto intitulado Index, do livro Escuta. “Um cavalo morto não pode ler poemas”, começou a recitar, com a voz solta e emocionada de quem finalmente consegue exprimir-se. “Um leão morto não pode ler poemas”.

E continuou a ler os versos, que citam casos reais, lidos na imprensa. “Morto com 19 anos de idade no dia 19 de Abril/ Domingo de Ramos, Gary English, atropelado por um Land Rover/ Do Exército britânico sob o ataque de conquetéis molotov/ não pode ler poemas/ Todos os que morreram com 19 anos não podem ler poemas”.

Aqui, a literatura indigna-se com a injustiça da morte “de centenas de pessoas, inocentes...”, explicaria Eucanaã terminada a leitura. “A morte é injusta, porque nascemos para a eternidade. As pessoas escrevem e lêem poesia, porque a realidade não é suficiente. É preciso que nos indignemos contra a morte”.

No poema, que Eucanaã lê até ao fim, não é claro (como nunca é, na literatura) se a indignação é política ou ontológica. Na última estrofe, diz: “Os mortos em Ruanda, na China, na Bósnia, no Congo/ No Líbano, no Paquistão, nenhum deles nunca mais/ lerá um poema, é preciso que se diga”.

Mas termina: “Meu pai não pode ler este poema”.

 

O PÚBLICO está em Óbidos a convite do Folio

Sugerir correcção
Comentar