Caos no PSOE abre caminho a cenários de implosão. E depois?

A luta pelo poder dentro do mais velho partido espanhol ameaça romper os actuais e precários equilíbrios políticos em favor do PP e do Podemos

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A questão que se punha nesta quinta-feira era simples: quem manda no PSOE? Não se sabe Reuters/Eloy Alonso

O histórico Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), fundado em 1879, está em processo de autodestruição e em risco de implosão. Está dividido em duas facções que não se reconhecem mutuamente, invocando duas legitimidades e estratégias irreconciliáveis. A hipótese de terceiras eleições em Dezembro encerra uma ameaça de “extinção”. Evoca-se o fantasma do PASOK grego.

A situação política espanhola tem sido definida como um infindo impasse na tentativa de formar um governo e tende a agravar-se. Depois da dificuldade em lidar com um sistema pluripartidário, divisa-se nova complicação. Previne no La Vanguardia o jornalista Enric Juliana: “O Partido Socialista está a transformar a sua crise interna numa crise de Estado ao ligar o calendário das suas vertigens com os prazos de investidura [do governo]. A esquerda espanhola está a trinta minutos do suicídio se acabar por forçar terceiras eleições gerais.”

Não se trata apenas de garantir uma nova hegemonia do Partido Popular ou uma ressaca conservadora. É que, em caso de ruína do PSOE, a alternativa ao PP será o Podemos, de Pablo Iglesias, o que mudaria todos os dados do jogo.

Passemos a semana em revista.

Quem manda?

A questão que se punha nesta quinta-feira era simples: quem manda no PSOE? Não se sabe. Para os críticos, o secretário-geral, Pedro Sánchez, cessou as suas funções após a demissão da maioria dos membros da comissão executiva federal, na quarta-feira. Sánchez recusa essa interpretação dos estatutos e garante que não se demitirá. Marcou para este sábado uma reunião do comité federal (o órgão superior do partido, com 290 membros). Propõe que ele convoque eleições primárias para o cargo de secretário-geral, a 23 de Outubro, e um congresso extraordinário, a 12 e 13 de Novembro.

Há duas legitimidades em choque. As pontes entre os “dois bandos” estão rompidas. Os críticos pediram a convocação da comissão de garantias, o órgão jurisdicional do partido, para confirmar a queda de Sánchez. Três dos seus membros, favoráveis aos críticos, anunciaram uma rápida deliberação.

A “declaração de guerra” foi lançada por Sánchez na terça-feira ao anunciar a inesperada realização de primárias em Outubro e um congresso em Dezembro. Após seis derrotas eleitorais consecutivas, as últimas das quais na Galiza e no País Basco, acumulando os piores resultados de sempre, o secretário-geral estava sob forte pressão dos adversários internos. Estes, que na maioria tinham defendido (no interior do partido) a abstenção no voto de investidura de Mariano Rajoy, opõem-se a que o partido negoceie com o Podemos a formação de um governo alternativo, graças a um hipotético apoio do Cidadãos e de partidos catalães. Argumentam que a única razão que poderia levar Iglesias a um acordo seria a divisão do PSOE.

Por outro lado, opõem-se a terceiras eleições em Dezembro, temendo que os socialistas sejam esmagados em benefício do Partido Popular. O próprio Sánchez colocou assim o problema: “Há dirigentes que não pensam o mesmo que eu, que crêem que nos devemos abster na investidura (...) Precisamos de debater e votar para que o PSOE tenha uma única voz.”

Os “barões”

Havia um acordo para que as primárias e o congresso se realizassem “quando houvesse governo”. A jogada de Sánchez foi vista como tentativa de um “plebiscito pessoal” num calendário que não permitia aos críticos organizar uma alternativa. Estes defendem que o PSOE não deve inviabilizar um governo minoritário do PP, antes assumirem-se como líderes da oposição. Mas Sánchez tem um discurso para mobilizar as bases: “Rajoy sim, ou Rajoy não?” Apelou esta semana o seu aliado Miquel Iceta, líder socialista da Catalunha: “Pedro, livra-nos de Rajoy.” Ironizou um jornalista: “É uma forma original de nos livrar de Rajoy, fazê-lo crescer enquanto tu encolhes em cada eleição que se repete.”

Foi neste quadro que os “barões regionais” do PSOE, como Susana Díaz, Ximo Puig, García-Page ou Fernández Vara (respectivamente presidentes da Andaluzia, Valência, Castela-Mancha e Extremadura), apoiados por ex-líderes do partido, como Felipe González, Joaquín Almunia, Rodriguez Zapatero ou Rodríguez Rubalcaba, decidiram passar ao ataque e provocar as 17 demissões na comissão executiva. Invocam a necessidade de travar a “estratégia de suicídio” do PSOE.

Um quadro europeu

Num artigo no El País, intitulado “La guerra de las rosas” e que merece ser lido, o politólogo Jorge Galindo chama a atenção para o facto de, para lá da mesquinhez ou de “uma mera luta pelo poder vazia de conteúdo”, há algo quase sempre algo mais: “Poucas são as batalhas pelo controlo de um partido em que não se contraponham visões de fundo.”

Sob vestes espanholas, o conflito reflecte a nova cena política da social-democracia ocidental. “Por um lado, está a alternativa de colaborar com o centro e o centro-direita tradicionais, ou inclusive de ocupar [o seu espaço], forjando um bloco para a estabilidade e reformas comedidas. O primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, representa este caminho.”

Qual é a outra via? “O contra-argumento define também a via oposta: qualquer pacto com as elites é uma traição e, portanto, o dever da social-democracia é afastar-se, não aproximar-se, do centro-direita. Há poucos dias, James Corbyn saiu triunfante da sua própria guerra interna (...). A via central, em que o socialismo se recicla para propor novas coligações entre ganhadores e perdedores da evolução económica dos últimos anos, permanece inexplorada. E Pedro Sánchez decidiu ir à guerra com a estratégia de Corbyn.”

Outro politólogo, Pablo Simón, aponta no mesmo jornal dois aspectos críticos da crise do PSOE, a que chama “cargas de profundidade”. A primeira e fundamental é a estratégia a seguir após umas eleições que converteram o PSOE em partido mediano, o decisivo para governar.” Sánchez apostou em que o fracasso da investidura de Rajoy o catapultaria para o poder através de uma maioria alternativa. Os “barões críticos” optam pela abstenção, de modo a não arriscar terceiras eleições, calculando ser melhor “marcar a agenda a partir da oposição”.

“Esta fractura estratégica cruza-se por sua vez com a organizativa. Sánchez foi o primeiro secretário-geral eleito pelo voto directo das bases, sistema que lhe permite apelar à legitimidade das bases, às quais não hesita recorrer para fazer bypass aos críticos do seu partido.” O que constitui um factor de risco para os críticos: se conseguirem afastar Sánchez e se abstiverem na investidura perderão o apoio de muitos militantes. “É um beco sem saída.”

Caos e ordem

Entre a retórica e a realidade, não se faz ideia do que acontecerá no comité federal deste sábado. Fala-se em “guerra sangrenta e fratricida” num partido “fracturado de alto a baixo”. É ocioso fazer cenários. Na quinta-feira à noite, Susana Díaz, a rival de Sánchez, a quem de momento não interessa disputar o poder, enviou uma mensagem “pacificadora”. O PSOE andaluz “ajudará a coser” a unidade do partido neste “momento crítico e grave”. Mas avisou Sánchez de que o calendário das primárias e do congresso não pode obedecer a “interesses pessoais”. Isto é, convida-o a recuar.

Observa Enric Juliana que a política espanhola está a submeter a população a um exercício inédito e violento: “Votar, e voltar a votar até à exaustão”.

Previne: “O caos está a apoderar-se do enxame político espanhol. E o caos faz sempre aumentar o desejo de ordem. É o que acabámos de comprovar na Galiza e no País Basco, em que triunfaram sem problemas dois governantes que souberam apresentar-se como bons gestores e pouco propensos à aventura.” 

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