O Boss a ser um boss

Bruce Springsteen acaba de lançar a sua autobiografia "Born to Run", na qual revela uma voz literária surpreendente, fluida e cheia de sumo

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Ander Gillenea/AFP Photo

Até há poucos dias, havia para mim um tempo antes de Randy Blythe e um tempo pós-Randy Blythe. Perdão, deixem-me explicar: Blythe é vocalista da banda de metal Lamb of God e, em 2012, esteve preso na República Checa por suspeita de homicídio involuntário. Por ali se manteve, por meses a fio, longe da família, dos amigos, dos palcos, da música, da língua-mãe e até, não raramente, de um simples cigarro.

Sucede que, felizmente, a experiência ficou-se-lhe cravada na memória e, após ter sido ilibado, libertado e enviado de volta aos Estados Unidos da América, Blythe escreveu um relato magistral sobre essa experiência: "Dark Days". Ao longo de toda a minha vida, devo ter lido mais de cinquenta biografias e autobiografias de músicos, mas nada do calibre de Blythe: aquelas letras encerram uma voz literária que, fruto do preconceito, não poderíamos prever, vindas de um tipo que ganha a vida (e que esteve nomeado para cinco (!) Grammy) a grunhir. Mas isto foi só até me ter chegado às mãos, cortesia da Elsinore, a autobiografia de Bruce Springsteen.

Deixemos já isto esclarecido: não sou o típico fã de Springsteen, embora já o tenha visto ao vivo e me cruze, de quando em vez, com alguns dos seus temas intemporais. Mas os seus trabalhos nunca me apaixonaram. Contudo, a curiosidade pelo estilo de vida irreverente das estrelas rock (e não só) fez-me querer ler isto. E ainda bem que aconteceu.

Acontece que, ao contrário do que eu erradamente esperava, Springsteen tem uma voz literária surpreendente, fluida e cheia de sumo. Enquanto o lemos, aprendemos com o que é dito "ipsis verbis", mas também nas entrelinhas. Isto torna Springsteen num escritor, e não num autor. Consegue — especialmente nas páginas referentes à sua infância — transportar-nos para os contextos e mostrar-nos como se sentiu ao atravessá-los. Isto ainda é mais valioso se nos lembrarmos que a história de Springsteen é relativamente banal, quando comparada com a de outros músicos (quereis exemplos de vidas atribuladas à séria? Então é uma questão de agarrarem em "Scar Tissue", de Anthony Kiedis, dos Red Hot Chili Peppers, ou na autobiografia de Slash, por exemplo).

Para mim, o facto de álcool e drogas serem uma raridade na vida do artista demonstra muito sobre essa tranquilidade relativa ao longo de toda a vida, excepção feita às depressões e às ocasionais faltas de tecto. E não venham com a história de que a ausência de drogas é a razão determinante para a longevidade de Springsteen, porque… Rolling Stones.

O facto de Springsteen conseguir agarrar-nos pelos colarinhos com esta autobiografia — com quase 600 páginas, mal damos pela passagem do papel entre os dedos, o livro acaba-se em menos de nada — ainda demonstra mais a sua mestria na arte da escrita. É como se Springsteen fosse um Knausgaard com pouco tempo para ler Proust. E isto devia ser mais que motivo para ler "Born to Run".

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