Um herói moderno numa tragédia clássica

“Eu trabalhava para o governo. Agora trabalho para o público”

Desde que, em 2013, viu o seu voo em direcção a Cuba interrompido pela revogação do seu passaporte pelo governo norte-americano, que Edward Snowden vive exilado em Moscovo. As razões para esta atitude dos EUA bem como para a emissão de mandados de captura e a acusação pelo crime de espionagem ao abrigo da Lei de Espionagem de 1917 são bem conhecidas.

Edward Snowden desviara e divulgara milhões de documentos que revelaram sistemáticas actuações secretas da NSA (National Security Agency), algumas legais e outras ilegais, de espionagem e colheita de dados com total desprezo pelos direitos de privacidade e pelo segredo das telecomunicações dos cidadãos norte-americanos e estrangeiros.

Foi uma evidente ironia do destino, Snowden ser obrigado a exilar-se em Moscovo, servindo, involuntariamente, de flor na lapela a Vladimir Putin; uma ironia própria da tragédia, no sentido clássico, em que a sua vida se transformou: A tragédia clássica deve cumprir, segundo Aristóteles, três condições: possuir personagens de elevada condição (heróis, reis, deuses), ser contada em linguagem elevada e digna e ter um final triste, com a destruição ou loucura de um ou vários personagens sacrificados pelo seu orgulho ao tentarem revoltar-se contra as forças do destino” (Wikipedia).

Como já aqui referi, as revelações de Edward Snowden tornaram evidente que o poder, mesmo em democracia, pode actuar, secretamente e em roda livre, durante anos e anos, recolhendo informação pessoal e privada de cidadãos de todo o mundo e que ninguém sabe como vai ser utilizada porque “a ocasião faz o ladrão”. E, como sabemos, o Estado, ainda que democrático, no seu “horror ao vazio”, é imparável na sua busca de novas funções, actividades e utilidades.

As escutas aos telefones dos governantes aliados, como a chanceler Merkel ou, ainda, a recolha maciça, absolutamente secreta e ilegal, dos metadados das comunicações nacionais e internacionais do tipo “traineira a arrastar as redes no fundo dos oceanos”, provocaram, para além de bastante embaraço ao presidente Obama, algumas mudanças legais positivas nos EUA em defesa da privacidade dos cidadãos, nomeadamente com o fim do referido programa de recolha maciça. Os jornais Guardian e Washington Post ganharam mesmo, em 2014, o mais qualificado prémio de jornalismo norte-americano, o Pulitzer, pelo serviço público prestado com os artigos que publicaram, baseados nas revelações de Snowden.

Mas a verdade é que Snowden é, aos olhos do governo norte-americano, um ladrão e um espião, que deve responder em tribunal pelos crimes de desvio de propriedade do Estado e de espionagem tal como o mesmo é definido na lei de 1917 que não prevê qualquer atenuação ou justificação para actuação de Snowden apesar de este não ter espiado, nomeadamente ao serviço de qualquer potência estrangeira. Snowden limitou-se a desocultar aquilo que era desconhecido e praticado, ilegalmente e abusivamente, nas costas dos cidadãos norte-americanos e de todo o mundo. Snowden foi um guerrilheiro mas não um terrorista nem um traidor mas, na tragédia clássica como é a sua, a revolta contra os poderes estabelecidos e a “ordem natural das coisas” tem de ser punida.

Há, no entanto, quem queira combater a inevitabilidade do desfecho trágico ou triste da tragédia Snowden: a American Civil Liberties Union, a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch têm conduzido uma campanha para obter o perdão presidencial de Obama para Snowden, única forma de este poder regressar ao seu país sem ser imediatamente preso e enfrentar um processo judicial que terminará com a sua condenação em pena que poderá chegar aos 30 anos de prisão.

O perdão presidencial é uma reminiscência do poder divino dos soberanos que afasta o cumprimento das penas ou mesmo impede a continuação de processos-crime e que, nos EUA, tem sido utilizado pelos sucessivos presidentes nos mais diversos casos, muitas vezes, políticos e controversos.

Mas haverá alguma possibilidade de Obama conceder o perdão a Snowden? Objectivamente, não. Obama, para além de nunca ter demonstrado qualquer simpatia por Snowden, nunca irá transmitir uma imagem de fraqueza democrata no meio do combate Hillary Clinton – Donald Trump. Para tornar, ainda, mais impossível a hipótese do perdão, o próprio Washington Post que ganhou o Pulitzer com as revelações de Snowden, publicou no passado sábado, um editorial em que defende que Obama não deve perdoar Snowden porque, embora algumas das revelações fossem meritórias, outras causaram “tremendos danos” à segurança nacional. Um editorial que seria, no mínimo, chocante, não fosse sabermos que a tragédia se cumpre com o sacrifício do herói.

P.S.: Se quiser saber um pouco mais sobre este mundo em que vivemos pode ver o filme Snowden de Oliver Stone, recém-estreado entre nós, ou ler o livro em que se baseia o filme, Os ficheiros Snowden, do jornalista do Guardian, Luke Harding.

Advogado, francisco@teixeiradamota.pt

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