O reaccionário perturbador

Para muitos foi polémico, génio, moralista, frasista, contista, cronista e cretino. Para outros, apenas misógino ou misantropo. Os contos e crónicas estão finalmente editados em Portugal.

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A filha diz que “existem muitos Nelson Rodrigues: o cronista mundano, o cronista político, de futebol, o autor de folhetins, de romances, do consultório sentimental” FOTO: DR

Quando o escritor brasileiro Ruy de Castro tinha cinco anos a sua mãe costumava sentá-lo ao colo enquanto lia A Vida Como Ela É, a crónica diária de Nelson Rodrigues no jornal Última Hora. Conclusão que Castro tirava em 2003: “Eu tinha cinco anos e era o garoto que mais sabia de adultério no mundo”.

A história foi contada à jornalista Anabela Mota Ribeiro, que teve a delicadeza de a contar de volta quando falámos com ela acerca de Nelson Rodrigues, agora que a editora portuguesa Tinta-da-China se apresta a publicar O Homem Fatal, selecção das suas crónicas, e A Vida Como Ela É, selecção dos seus contos, colmatando uma falha tremenda na nossa percepção da literatura brasileira – em particular tendo em conta que a obra de Rodrigues se espraia por quase todos os géneros, poesia à parte.

Por mais simples e pícara que seja, a historieta de Castro diz-nos que Nelson Rodrigues era popular e escandaloso. De facto, os temas dessas histórias em forma de crónica eram, invariavelmente, o pecado, o adultério, enfim, a moral com bicho. É essa a imagem que os portugueses, os escassos portugueses que ouviram falar dele, têm do escritor: alguém com estatuto de provocador, que diz o que lhe apetece e, por alguma razão, é venerado pela direita.

Em parte esse ideário datará do início da blogoesfera, por volta dos primeiros anos de 2000, quando Pedro Lomba e Pedro Mexia, nos blogues (que então explodiam), introduziram o autor a uma nova geração de leitores e certificaram o estatuto de culto de Nelson Rodrigues entre nós. Não era fácil avaliar se os elogios de Lomba e Mexia, que escreviam juntos n’A Coluna Infame, padeciam ou não de justeza – pela simples razão de que os livros não estavam editados em Portugal.

Ora, “ele não foi editado antes cá porque os herdeiros não facilitaram. No caso dele há filhos de várias mulheres”, explica Pedro Mexia, que selecciona as crónicas de O Homem Fatal e há muito procurava que Nelson fosse publicado cá. Para sermos exactos, em Portugal estava editada (na Cotovia) uma antologia de teatro, cuja coordenação esteve a cargo de Abel Barros Baptista, que selecciona os contos de A Vida Como Ela É.

Estes dois livros, diz ao Ípsilon Sónia Rodrigues, filha do autor e coordenadora das suas edições, “são o ideal para se conhecer Nelson Rodrigues”, mesmo tendo em conta que “não existe o essencial de Nelson Rodrigues, porque existem muitos Nelson Rodrigues: o cronista mundano, o cronista político, de futebol, o autor de folhetins, de romances, do consultório sentimental”.

Não há exagero: Nelson Rodrigues escreveu em todos esses géneros e se por um instante não vos ocorre quão pouco convencional isto é, imaginem o historiador Rui Ramos a escrever folhetins sobre incesto ou Maria de Fátima Bonifácio a fazer metáforas com a canhota de Ruben Neves como no novo site de desporto do Expresso.

A palavra mais usada para definir Nelson Rodrigues foi, quase de certeza, reaccionário – em parte porque era um conservador que zurzia (por exemplo) contra os jovens, mas também por ter defendido a ditadura. Mas um reaccionário em cujos contos ou peças de teatro havia mulheres adúlteras. Houve outras: polémico, génio, moralista, frasista, contista, cronista, cretino, misógino ou misantropo.

Mas talvez Nelson não tenha sido apenas um escritor polémico ou viciado na polémica. “O que ele queria”, diz Sónia, “era contar histórias. Tinha necessidade de contar histórias e eram as histórias que criavam polémica”. De forma mais sintética, “ele era um escritor no sentido em que não conseguia fazer mais nada excepto escrever”, considera Abel Barros Baptista.

Vida nos jornais

Nelson Rodrigues nasceu filho de jornalista e os jornais definiram a sua vida e a sua obra: “O que ele escrevia podia ser lido por toda a gente”, diz hoje Sónia. “Os jornais deram-lhe esse lado de falar claro”.

Não é exagero dizer que os jornais lhe estavam no sangue: o pai, Mário Rodrigues, foi jornalista, director e fundador de jornais; aliás, Nelson começou a escrever em jornais aos 13 anos, no A Manhã, fundado pelo pai.

Fazia crónica de polícia, um universo que marca bastante a sua obra. Mas se os jornais deram, também tiraram: tinha 13 anos quando uma mulher entrou no jornal A Crítica à procura de Mário e, não o encontrando, pediu para falar com Roberto (filho de Mário e irmão de Nelson). Quando deu com Roberto baleou-o no estômago, matando-o.

Dois meses depois foi a vez de Mário Rodrigues – que ia ainda nuns escassos 44 anos de idade – morrer com uma trombose cerebral. Nelson ainda não havia chegado ao quarto de século quando viu morrer o seu irmão Joffre, que sofria de tuberculose – uma doença de que o próprio Nelson padeceu.

É difícil escapar a isto: “A tragédia marcou-o muito”, explica Sónia. “Perdeu dois irmãos, a família perdeu tudo, passou fome”. Talvez tenha sido isso que lhe deu “a característica única de falar da natureza humana”. Isso reflecte-se acima de tudo nos folhetins, nos contos (nestes, de A Vida Como Ela É), géneros em que surge a sua fixação pelo pecado.

“Estas questões do comportamento humano sobre as quais o Nelson Rodrigues escreve”, diz Anabela Mota Ribeiro, “ainda são subversivas. O Manuel Bandeira perguntava-lhe porque é que ele não escrevia sobre pessoas normais e ele respondia que escrevia sobre pessoas normais e retorquia que 'A Bíblia está cheia de incestos'”.

Apesar disto, Rodrigues auto-qualificou-se como moralista. E talvez fosse: “Ele identificava que as paixões são reprimidas e quando vêm à tona vêm como perversão. Era moralista no sentir de mostrar isso”, explica Sónia, que acrescenta que “a ser moralista era moralista consigo mesmo, era muito severo consigo mesmo”. Ela dá como exemplo a vida passional do pai: “Ele vivia as paixões dele – só que ele não achava legal ter paixões, sofria com isso, porque isso fazia as pessoas infelizes”.

Anabela Mota Ribeiro não perde muito tempo com a palavra “moralista”: “Acho-o mais penetrante e piedoso com o ser humano que moralista ou reaccionário”. Para os portugueses parece ser mais fácil passar ao lado de certos aspectos da personalidade de Nelson Rodrigues – as polémicas foram longe, a nós chegam as palavras.

Abel Barros Baptista, que considera que é no teatro que Rodrigues é grande porque aí “não tem grandes rivais e teve uma projecção muito significativa” garante que o discurso sobre o escritor “está muitas vezes confinado a coisas que não são muito importantes: as polémicas que manteve, coisas que diziam sobre ele, coisas que ele dizia sobre outros. Não era um tipo consensual, nem um tipo pacífico nem um tipo passivo”.

O que é ser polémico?

Mas o que é ser polémico? No teatro era pegar em temas que à época se considerava que não deviam ser pegados – uma mulher adúltera, por exemplo. Nas crónicas políticas era zurzir em termos enfáticos, por vezes de forma irracional, contra este ou aquele. “Era polémico porque dizia que o rei vai nu”, considera Sónia. “Ele dizia: 'A esquerda não tem negro'. E a esquerda hoje dá-lhe razão”.

O pai de Sónia “não conseguia deixar de expressar as suas opiniões mesmo que toda a gente pensasse o contrário”. Ela concede que ele “era dado ao exagero”, mas essa forma de exagerar servia “para mostrar a verdade, o que estava encoberto pela hipocrisia”. (E assim já se percebe que lhe chamassem, e ele próprio se chamasse, moralista”). “Essa coragem”, continua Mexia, “fez com que muita gente se afastasse dele, amigos, intelectuais”.

Mexia, que na selecção para a Tinta-da-China deixou de fora as crónicas de futebol, lembra que nem os amigos gostavam do que ele escrevia – por ser reaccionário. Mas recorda que Nelson Rodrigues “não era um ideólogo”. “Muitas opiniões políticas dele são mais embirrações que outra coisa qualquer. Deviam menos a uma cartilha do que a coisas que ele não suportava”. Aqui, de novo, sente-se um padrão: do que Nelson Rodrigues não gostava era “da retórica dos corajosos de sofá”. É, mais uma vez, uma implicação com a hipocrisia. Onde Nelson via um segredo, uma mentira, uma hipocrisia, chegava-lhe um megafone.

Enquanto cronista político, continua Mexia, Rodrigues “bate em quem faz exibicionismo moral”, “chama constantemente a elite à realidade”, assume combates como estar “contra a mitificação da juventude. Numa altura em que a juventude tinha poder como nunca. Isso era visto como extravagante”.

Este disparar contra múltiplos alvos valeu-lhe, claro, ser considerado misógino. Que fazer com isto? Um tipo escreve uma obra gigantesca e de repente é reduzido a misógino? “Se quisermos usar a questão da 'misoginia' então na literatura ninguém se safa”, diz Mexia. “Ele também pode enfrentar essa acusação mas é pouco interessante, essa acusação”. Para Abel Barros Baptista termos como machista, misógino são usados como se fossem “rótulos fixos que a posteridade se vê obrigada a aceitar”. Sendo que nem sequer “é inteiramente claro que sejam verdadeiros”.

Baptista considera é que Rodrigues “era tão polémico que a forma de lidar com ele era desistir de o entender, vê-lo como personalidade fixa e repetir [uma dessas palavras, como misógino ou misantropo]”. Ou seja: se não o compreendemos reduzimo-lo a uma coisa que não apreciamos e chamamos-lhe esse nome tantas vezes que há-de ser verdade.

Desarrumar convenções

Nelson Rodrigues levou algum pau, durante a vida, e já nem estamos a falar das tragédias pessoais. De certo modo, talvez se tenha posto a jeito. De acordo com Abel Barros Baptista, “há um plano que perturba a leitura e facilita que ele seja vítima de si próprio: a tendência dele para mostrar que o desejo predomina sobre as regras, a norma”.

Baptista continua: “Ele actua num plano que desarruma as nossas convenções. Isso tornava-o desarmante, perturbador”. Porquê? Porque mostra “que estado, instituições, etc, são frágeis e quebram face a coisas mais fortes, como a dimensão erótica das pessoas”. Curiosamente, perturbador é palavra que Anabela Mota Ribeiro usa para o descrever: “Era um escritor estranho – debaixo da capa de uma aparente facilidade podia ser muito perturbador. Usava uma estrutura muito simples e depois era muito psicanalítico”.

O que seria de Nelson Rodrigues hoje? Poderia escrever à vontade nos jornais, enquanto fazia as suas peças de teatro (e telenovelas, cujo género inaugurou)?

Mexia crê que não: “Hoje em dia és crucificado se sais fora de certas balizas de opinião. Hoje é difícil escrever um texto sem ofender ninguém. Há uma lógica de linchamento que dificulta ter a liberdade que o Nelson Rodrigues tinha”. E, valha a verdade, Mexia não está sozinho nisso. Barros Baptista crê que “hoje ele não teria chance. Os jornais hoje não gostam de pessoas assim. Nem querem mostrar que têm lugar para todos”. Sónia também crê que “era difícil ter um Nelson Rodrigues hoje em dia”.

Em última instância vamos sempre parar ao seguinte: como é que se mede um escritor? Pela escrita. E tendo em conta que escreveu em tantos géneros, há certamente um Nelson Rodrigues para cada um de nós. Mesmo os que não apreciam reaccionários.

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