A mulher que viveu duas vezes

Almodóvar regressa à boa forma com uma adaptação de Alice Munro.

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Julieta: estará Almodóvar a tornar-se um Chabrol hispânico?

E se Pedro Almodóvar se estivesse a tornar num Claude Chabrol hispânico? É uma possibilidade tentadora, admita-se, porque à excepção do divertissement de Os Amantes Passageiros (2012), os últimos filmes do cineasta espanhol – Voltar (2005), Abraços Desfeitos (2009), A Pele onde Eu Vivo (2011) e agora Julieta – têm algo daquele olhar simultaneamente impiedoso e afectuoso sobre a burguesia provincial que o francês aperfeiçoou nas últimas duas décadas da sua carreira. E porque são filmes que têm sempre uma qualquer peculiar dimensão de “filme negro”, onde há sempre segredos existenciais a quererem vir ao de cima para voltarem a afundar logo a seguir. Julieta é, diga-se desde já, o melhor filme deste lote, e é também o mais “Chabroliano” destes últimos filmes, pelo modo como o tema da culpa e da responsabilidade é declinado pelo realizador.

Quer através da música convenientemente inquietante de Alberto Iglesias, quer pelos segredos que a heroína transporta consigo que evocam algo dos grandes clássicos da woman’s picture hollywoodiana (ai aquela governanta ríspida a que Rossy de Palma dá algo de Judith Anderson ou Stéphane Audran), há sempre uma sensação em Julieta de que nada é tão simples como parece, que há algo de tão inconfessável que pode destruir vidas – e não é isso que os segredos fazem no cinema?

Julieta, então, encontramo-la primeiro à beira de partir de Madrid com o seu companheiro, mas o encontro casual com uma amiga da filha que não vê há anos leva-a a abandonar esse projecto. Almodóvar conta a sua história alternando dois tempos narrativos onde Julieta é interpretada por duas actrizes diferentes – Emma Suárez no presente, Adriana Ugarte no passado – repetindo aquele que tem sido um dos seus leit-motiv narrativos recentes, a viagem entre o passado e o presente, aqui invertendo o que Hitchcock fazia em Vertigo (Julieta é também uma mulher que viveu duas vezes). É por essa dimensão esteta anunciada desde o início que Julieta corre o risco de repisar o exercício de estilo em que os últimos filmes do cineasta se deixaram encerrar.

Mas, ao recorrer a contos de Alice Munro combinados numa sedutora teia de pequenos nadas que só gradualmente vão revelando a sua importância, Almodóvar reencontra (mesmo que em tom menor do que na sequência de obras-primas da passagem para os 2000) algum do seu élan criativo, sem perder de vista o grande romantismo malsão e desesperado das heroínas trágicas que sempre amou. Julieta é uma romântica à procura do Romeu que sempre lhe escapou por entre os dedos, uma mulher que procura apaziguar uma culpa  que talvez não exista, uma grande heroína Almodóvariana. Julieta é um grande pequeno filme de câmara, um melodrama onde todas as viagens, da Galiza à Andaluzia, de Madrid a Portugal, acabam encerradas entre as quatro paredes de um quarto, de uma sala, de uma casa, de um compartimento de um comboio, de um carro. Há coisas das quais não se consegue fugir, e Almodóvar liberta-as entre quatro paredes.

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