Jangadas de cimento

À semelhança do livro de Saramago, também a Europa arrisca dividir-se em jangadas, mas de cimento.

Controlo total das fronteiras. Este foi um dos objectivos traçados pelos líderes dos 27 países da União Europeia na frágil e muito pouco ousada cimeira de Bratislava. Isto e um reforço futuro da segurança e da defesa europeias, tarefa dificultada com a saída da UE do Reino Unido e do seu nada negligenciável exército. Mencionou-se ainda, talvez por precaução, um “roteiro” de estratégias para conquistar a confiança dos europeus, evitando o incómodo de acrescentar que tal “confiança” é hoje um mosaico de duras contradições.

Por falar em confiança. Também ela existia na Europa do início do século XX, a que já chamaram “o século do povo” e que, contra esse mesmo povo, albergou duas guerras mundiais de efeitos devastadores. Mas nos primeiros anos de tal século pairava no ar uma euforia que parecia conduzir a Europa a um apogeu de bem-estar e humanidade. No seu livro O Mundo de Ontem – Recordações de Um Europeu (ed. portuguesa Assírio & Alvim), o escritor austríaco Stefan Zweig escreveu, recordando esses tempos: “Como são absurdas estas fronteiras, dizíamos uns aos outros, se qualquer avião as sobrevoa a brincar, como são provincianas, como são artificiais estas barreiras aduaneiras e estes guardas fronteiriços, como estão em contradição com o espírito da nossa época que ambiciona claramente a união e a fraternidade universal!” Mas esses foram, no tempo útil da sua vida (Zweig suicidou-se no Brasil, em 1942, quando os nazis expandiam o seu domínio pela Europa), os “últimos anos de confiança na Europa.” Porque a Primeira Grande Guerra não tardaria, semeando de forma inaudita a morte onde antes grassava a esperança; e porque a Segunda, passado um ligeiro e duro interregno, não tardava a completar o sinistro e devastador “trabalho” da Primeira. Também nessa altura, apesar dos sinais de perigo, se acreditou até à última hora no bom senso. Ele havia de imperar, numa Europa que prosperava. Mas o que imperou foi a sede de domínio, de conquista, da expansão de fronteiras e do desprezo pelo Outro. Hoje, é em nome desse mesmo desprezo (declarado ou dissimulado) que se fecham fronteiras. Na linha de Zweig, disse um dia o célebre compositor brasileiro Tom Jobim: “O homem constrói muros, mas o urubu passa por cima”. Só que o homem tem outros ardis. Como alvejar o urubu.

No romance Jangada de Pedra, de José Saramago, a Ibéria separa-se graciosamente do resto da Europa, como se do corpo de um continente se libertasse uma inesperada ilha. Hoje, a Europa também parece na iminência de se dividir em jangadas, mas de cimento. Físicas, como os muros que se vão erguendo impostos pelo medo e pela xenofobia, mas também ideológicas. A União vê cavarem-se a cada dia que passa as divergências entre os grupos internos que a compõem (os do Sul, os do Norte, os do grupo de Visegrado, os mais fortes, os mais fracos, os que oscilam entre uns e outros por razões de estratégia ou de oportunismo). Até Março de 2017, data em que devem estar prontas as propostas que Bratislava enunciou, o fluxo de refugiados e as divergências internas hão-de tornar mais difícil a vida na Europa. Depois da euforia, o desencanto. Oxalá não venha o resto.

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