Palavra de Parlamento

É pelo facto de o discurso político ser tão pobre, e o seu vocabulário tão escasso, que qualquer nova palavra é de imediato absorvida por toda a gente.

Não é só no Parlamento, mas acaba por ser essencialmente nele que se afina ou vulgariza um vocabulário que tem na política a sua génese. Determinada palavra surge num certo contexto, num discurso ocasional, num repente de oratória, num artigo de imprensa, e logo é feita “lei” na fala. Nascida a “geringonça”, não há quem não recorra à palavra para classificar a aliança PS-PCP-BE que sustenta o governo; aparecido o “arco da governação”, em todo o lado dele abusam, tornando-o mais célebre que o arco da Rua Augusta ou do que os arquinhos-e-balões das festas populares; invocadas uma vez as “forças de bloqueio”, passaram ao uso corrente onde quer que se ajustem; depois dos “boys” de Guterres, há já “boys” de todas as cores; e, para continuar na mesma autoria, o “pântano” que ele inventou ainda nos persegue, em muitas e variadas formas.

Quer isto dizer que os políticos portugueses são, por norma, inventivos no vocabulário, na inspiração, na oratória, na formulação clara de uma ideia, de um objectivo? Na verdade, será o contrário. É pelo facto de o discurso político ser tão pobre, e o seu vocabulário tão escasso, que qualquer nova palavra, seja um simples neologismo ou a adaptação de antigo termo a novos significados, é de imediato absorvida por toda a gente. Claro que liberdades discursivas como, por exemplo, a de Assunção Esteves com o seu “inconseguimento”, foram sobretudo glosadas em anedotários (note-se que os moçambicanos usam, amiúde, “desconseguir”). Mas o insistente recurso à formulação “inverdade”, para dizer que alguém mentiu, pretendendo dar à palavra um ar de delicadeza, acaba por tornar caricato. Até por não permitir forma verbal (imagine-se o que seria “inverdadar”, por mentir) e obrigar a frases destas: “O senhor deputado disse uma inverdade”, o que é bem diferente de dizer que o dito parlamentar faltou à verdade ou, pura e simplesmente, mentiu. Chegaríamos ao ridículo de ouvir afirmar “o senhor é um inverdadeiro” em vez de “o senhor é um mentiroso”. No entanto, com estas e outras palavras (como o insistente sound byte, sem o qual nenhum político sequer existe) se vai fazendo a política que temos, de vocábulo limitado e imagética pobre. Não é preciso (aliás, seria ridículo) recuar aos arabescos oratórios dos últimos anos da monarquia constitucional ou à turbulência dos alvores da primeira república, mas conviria que os políticos lessem e escrevessem mais (e melhor), para que a sua expressão não se limitasse, em grande parte, a um punhado de palavras vulgares e mais do que gastas.

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