A racionalidade norte-coreana

Kim Jong-un aposta na crescente tensão entre os Estados Unidos e a China para garantir a impunidade do seu programa nuclear. Mas corre riscos se a China for forçada a rever a sua política.

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O quinto ensaio nuclear norte-coreano, no dia 9, foi também um teste aos limites da capacidade de resposta dos Estados Unidos e dos vizinhos, incluindo a China. O “irracional” Kim Jong-un e seus conselheiros fizeram uma jogada “racional”, explorando a brecha crescente entre os EUA e a China para aumentar a desconfiança entre eles e garantir a impunidade do seu programa nuclear. É por aqui que tudo parece passar.

As “sérias consequências” prometidas por Washington e mais sanções não são o que neste momento travará a Coreia do Norte. Nem a ameaça (não oficial) feita por Seul, anunciando um plano de ataque preventivo para “arrasar Pyongyang” em caso de iminente ameaça militar, nem sequer o debate sobre um programa nuclear sul-coreano. Pyongyang apostou em que a China ficaria muito irritada mas nada faria de drástico.

Na cena internacional não há uma única “racionalidade”, mas várias e em conflito. “A Coreia do Norte pensa que as armas nucleares a tornam mais segura. É um erro”, escreveu o analista americano Victor Cha. Lembra a declaração “franca” de um diplomata norte-coreano durante as negociações com os EUA em 2005: “A razão porque vocês atacaram o Afeganistão é que ele não tinha armas nucleares. Por isso nunca abdicaremos das nossas.”

A lógica norte-coreana tem como objectivo a sobrevivência do regime dos Kim e quer agora impor o reconhecimento do seu estatuto de potência nuclear — como o Paquistão.

Estados Unidos

Washington contra-argumenta que é o programa nuclear o que mais ameaça a sobrevivência do regime norte-coreano. Tem boas razões para o querer travar. Scott A. Snyder, do Council on Foreign Relations (CFR), enumera as principais. Tolerar o seu estatuto nuclear incentivaria mais Estados a violar o tratado de não-proliferação. Depois, é uma ameaça a aliados, como a Coreia do Sul e o Japão. Por fim, a Coreia do Norte não é o Paquistão e o seu regime totalitário não é fiável.

O almirante Mike Mullen, antigo chefe do Estado-Maior Interarmas, coordenou para o CFR um relatório (Independent Task Force on U.S. Policy Toward North Korea), ainda não publicado, sobre as opções perante a crise coreana. Explica: “A Coreia do Norte constitui um incrível perigo para toda a região. Num futuro não muito distante pode colocar os Estados Unidos continentais sob a ameaça de um míssil balístico intercontinental armado com uma ogiva nuclear. A possibilidade é hoje muito maior do que há dois ou três anos.” Não se trata apenas da segurança dos aliados.

Que fazer? Incentivar a China a assumir as suas responsabilidades. “Com uma liderança chinesa, a desnuclearização da Península da Coreia pode ser resolvida e sem ela caminhamos para uma situação muito mais perigosa.”

O relatório não recomenda a “mudança de regime” e propõe que os EUA dêem garantias à China de que “não têm intenção de alargar ao Norte o que estão a fazer no Sul”. Frisa: “A mais importante relação bilateral no mundo para os próximos 50 ou 100 anos é a relação entre a China e os Estados Unidos.”

Passemos a Pequim.

China

Em 2003, o presidente chinês, Hu Jintao, cortou o fornecimento de petróleo à Coreia do Norte por três dias. Forçou Pyongyang a negociar com os americanos. Pequim mostrou a sua capacidade de “persuasão” embora as conversações tivessem falhado. Hoje, o Presidente Xi Jinping parece paralisado num dilema.

Chineses e americanos partilham a oposição ao nuclear norte-coreano. Mas têm estratégias e temores diferentes. Washington e Seul dão prioridade à desnuclearização da península. Pequim dá prioridade à estabilidade da Coreia do Norte. Só a China pode impor sanções drásticas, que se poderão tornar “fatais” se levarem à desestabilização ou, caso limite, à implosão do regime dos Kim.

Pequim teme duas coisas. Primeiro, uma incontrolável massa de refugiados no seu território. Segundo, e sobretudo, o risco de Seul e Washington intervirem no Norte, até por razões de segurança nuclear, e chegarem à sua fronteira. A Coreia do Norte é, para os chineses, o Estado-tampão perante os americanos. As tropas e bases americanas na Coreia do Sul estão lá para a proteger do Norte. Mas Pequim vê-as como força para “conter” a China.

Uma “reunificação catastrófica” alteraria profundamente as relações de forças na Ásia Oriental. Mesmo uma reunificação pacífica, que faria da Coreia uma nova grande potência asiática, económica e militar, não agrada aos americanos, aos chineses e aos japoneses. E seduz cada vez menos os próprios sul-coreanos.

O teste nuclear de Janeiro passado cimentou a aliança entre Washington, Seul e Tóquio. Pior para Pequim: levou a Coreia do Sul a pedir a instalação do sistema de defesa antimíssil THAAD. Houve um acordo de princípio em Julho. A China encara isto como uma grave ameaça à credibilidade da sua dissuasão nuclear e já reagiu contra Seul.

O dilema de Xi Jinping é evidente: quer “estabilidade” mas a corrida nuclear norte-coreana está a tornar-se no mais grave factor de instabilidade na Ásia Oriental e, pior, a cimentar uma aliança hostil à China.

Coreia do Norte

O quinto teste marca um salto no conflito. A aceleração do programa nuclear de Kim põe em causa a tese chinesa de que se trata de uma “questão bilateral” entre americanos e norte-coreanos. Essa tese valia enquanto o programa era visto como embrionário, bluff e meio de chantagem diplomática. Se os americanos o passam a encarar como uma ameaça directa à sua segurança, Xi terá de repensar o seu dilema.

O teste foi mais um desafio de Pyongyang à China, forma de mostrar que rejeita a sua tutela. “Os norte-coreanos são ferozmente nacionalistas e detestam ser vistos como ‘província tributária’ da China”, escreveu o sinólogo Minxin Pei. A ameaça da Coreia do Norte não deriva da sua força, mas da sua fraqueza — o risco de “caos”.

Washington deixou de fazer da renúncia ao nuclear uma condição prévia para a negociação. Mas Pyongyang exige que a negociação seja sobre toda a Coreia e não apenas sobre a desnuclearização do Norte: quer anular a protecção nuclear americana no Sul. É um ponto fraco da estratégia de Kim: menosprezar a reacção da Coreia do Sul (que não posso aqui abordar e farei noutra ocasião).

Frank Perry, antigo secretário da Defesa de Bill Clinton, pensa que é demasiado tarde para forçar Pyongyang a abdicar da arma nuclear. Observa Snyder: “Se o desenvolvimento de armas nucleares se tornou a ferramenta central para a família Kim justificar a sua perpetuação no poder, a desnuclearização é apenas possível como produto de uma mudança de regime; a única alternativa à mudança de regime é a aceitação da Coreia do Norte como um Estado dotado da arma nuclear. Tal é a escolha estratégica que a Coreia do Norte põe aos EUA e seus aliados.”

Compreende-se assim a tese de Mike Mullen: a única forma de mudar as peças no tabuleiro passaria por uma nova relação entre Washington e Pequim. Aqui, entramos em terra incognita.

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