“Os GNR já não são um projecto, são uma consequência”

Excerto de GNR — Onde nem a Beladona Cresce, de Hugo Torres, a biografia da banda que é apresentada com concerto dia 20 na Casa da Música, no Porto. O livro está à venda a 22.

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Os GNR no início dos anos 1990: Rui Reininho, Zezé Garcia, Tóli César Machado e Jorge Romão DR

In vivo, Alameda e Coliseus

1990 começa como 1980: Rui Veloso grava um álbum histórico e os GNR dão concertos memoráveis. O epicentro do rock português continua a ser o Porto (o contrapeso, em relação à década anterior, passa de Almada para Cascais — com os Delfins a editar o bem-sucedido Desalinhados, onde se encontram canções como Marcha dos Desalinhados, Se Eu Pudesse um Dia ou Nasce Selvagem – e, de forma menos pop, para Lisboa – com Existir, o propulsor internacional dos Madredeus). O autor de Ar de Rock investe todo o primeiro semestre em Paço d’Arcos. Está a gravar um álbum conceptual sobre uma banda de província nos anos 1960 e 1970. Chamar-se-á Mingos & Os Samurais e venderá 200 mil exemplares, o que o deixará 24 semanas no número um do top de vendas e lhe valerá sete (!) discos de platina. Não Há Estrelas No Céu e A Paixão (segundo Nicolau da Viola) inscrevem-se imediatamente no cancioneiro nacional. Veloso planeava fazer este trabalho desde os tempos do “boom do rock português”, aquela altura em que os GNR andavam a dizer ao mundo que, apesar do sucesso que os seus temas faziam na rádio e nos leitores caseiros de vinil, o melhor era mesmo vê-los em palco. Gravar um disco “ao vivo” é, desde há muito, um objectivo da banda que, apesar de diversas tentativas, esbarra sempre em deficiências na captação do som — como aconteceu com o concerto no Coliseu do Porto. A resposta que o grupo encontra para estas dificuldades é a mesma de sempre: vão profissionalizar as tentativas. O primeiro passo é agendar duas datas no Coliseu dos Recreios de propósito para o efeito: 30 de abril e 1 de maio. Segundo passo: contratar os serviços de uma empresa norte-americana que trabalha com nomes como Pink Floyd ou Tina Turner para montar um sistema de luzes de palco nunca visto por cá (talvez o mais próximo, diz-se, tenha sido no concerto dos Cure em Alvalade). Vari-Lite é o nome da empresa e do sistema “revolucionário no campo da luminotécnica”, escreve O Primeiro de Janeiro. O light designer Luís “Pezinhos” Ventura faz o desenho de luz e envia-o para Inglaterra, ao cuidado do operador britânico que virá a Portugal para o auxiliar nos concertos — Mark Cunniffe —, ambos sob direcção de João Azinheira; o som é de Mário Ângelo. O terceiro passo é pagar a todos os participantes. Para os músicos e a habitual equipa técnica, é negociado o providencial cachet; para os restantes colaboradores — a assistência, que dará contributo fundamental à gravação —, o pagamento segue em géneros: os bilhetes serão mais baratos do que seriam habitualmente (1500 a 2500 escudos). O quarto e último passo é garantir que a iniciativa tem impacto mediático. Além das entrevistas da praxe e de uma sessão fotográfica especial para o momento (de fato e gravata), é garantida a transmissão em directo da primeira noite através da Rádio Comercial e a gravação em vídeo pela RTP — sob a batuta da realizadora Margarida Gil (...).

“Os GNR já não são um projecto, são uma consequência. Estamos a investir nisto os nossos melhores anos”, diz Rui Reininho ao Se7e.

“Gostamos de apostar em coisas novas e não temos feitio para permanecer adormecidos sobre o que já fizemos. Não temos esse estatuto de vedetas, de ficar sentados a apreciar o sucesso conquistado.”

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E acrescenta, desta feita ao Blitz: “Já não cabemos no Rendez--Vous. O problema é esse. Em princípio, pode ser um bocado kamikaze, mas tem sido sempre assim. Mais uma vez, lá vão os maluquinhos arriscar tudo. (...) Agora, seria muito mais compreensível não fazermos ondas, não estarmos a arriscar as coisas todas. Neste meio, e noutros, há muito boa gente que está à espera de dizer ‘pois, eles já não enchem aquilo… estão em queda livre… estavam lá 200 macacos…’, mas a nossa carreira não é neoclássica e nós temos de arriscar.” Podem esperar. Kamikaze? São esperadas duas enchentes no Coliseu — são esperadas e concretizam- se. A vintena de canções selecionada para o alinhamento – que inclui Apache dos Shadows, Runaway de Del Shannon (que morreu em Fevereiro) e um medley com Portugal na CEE, Sê Um GNR, Espelho Meu, Twistarte e Piloto Automático, os temas mais antigos da banda a chegar a esta ronda no Coliseu — é certeira. Numa breve de última página escrita após o primeiro concerto e a chegar aos quiosques a tempo do segundo, o recém-nascido jornal Público escreve: “Foi uma noite de glória para os GNR num Coliseu dos Recreios, em Lisboa, cheio. Foi a consagração de dez anos de carreira para uma banda que continua a provocar e a divertir um público já demasiado pequeno para ela. Muita produção, muito profissionalismo, num espetáculo bem articulado, onde não faltaram carros em palco e convidados. (...) Interpretaram de tudo um pouco, dos primórdios com Hardcore (1.º Escalão) aos clássicos como Dunas e Efectivamente em coro pela multidão. Mas a insistência foi para o último álbum, de onde sobressaíram Impressões Digitais e Morte ao Sol, a fazerem as delícias dos teenagers, e não só, ali presentes.” Os dois clássicos de que fala o Público deixarão duas referências para o disco duplo a editar no outono: Dunas é dedicada “a sete rapazes da Avenida de Roma”, os Sétima Legião (o gaiteiro Paulo Marinho é o convidado especial destas noites), e Efectivamente tem um dos seus versos mudados por Reininho para “Efectivamente/ Gosto de Lisboa/ Sem moralizar”, o que motiva uma ovação da plateia que, ao contrário de 1987, está de pé — as cadeiras foram, finalmente, retiradas para um show do género. “Ele era mãos no ar, guarda-chuvas abertos, cartazes desfraldados. Ele era suor, muito suor, tanto que à saída até as paredes escorriam. A aposta estava ganha: os GNR encheram o Coliseu de Lisboa até ao (quase) arrebentar das costuras”, escreve João Botelho da Silva no Diário de Notícias. “Desceram à capital para reconquistar o Coliseu”, segundo o portuense O Primeiro de Janeiro. “Uma hora e meia e outro tanto de palmas, assobios e gritos bastaram para desfazer as dúvidas a quem ainda as tinha: o GNR é o melhor grupo rock português”, avalia Paulo Alves, que assistiu ao primeiro concerto. “Profissionalismo, brilho técnico, vitalidade e imprevisibilidade foram as dominantes do espetáculo de segunda-feira”. (Segunda-feira, mas véspera de feriado: depois da noite de 24 para 25 de abril, em 1987, a banda agendou o Coliseu à volta do Dia do Trabalhador) O mesmo jornalista conversou no final do concerto com Reininho, Tóli e Romão (“o mais divertido dos GNR” no backstage), e encontrou-os satisfeitos com o resultado dessa noite. Nessa altura, já o baterista foi informado pelos técnicos de que a gravação “está óptima”; o vocalista faz o balanço: “Sem dúvida que foi marcante. Gostei bastante do público. Achei-o sincero, afinal de contas não fizemos batota. Actuámos espontaneamente sem preocupações para a gravação”. Essas, as preocupações, ficaram como é seu apanágio para o espetáculo e não para quem o iria ouvir depois: Reininho entrou em palco de automóvel, um Nash de 1932 (4 cilindros), e uma sovaqueira para a sua Smith & Weston 22, ajudando ao ideário de detectives e gangsters montado no cenário (afinal, há um álbum de originais a ser promovido); pelo meio ainda trocou várias vezes de roupa (uma das quais para um kilt) e puxou uma jovem da assistência para dançar Valsa dos Detectives.

“E nunca em Portugal se tinha vista coisa parecida, ou mesmo do género”, escreve Miguel Francisco Cadete no Blitz, que, mesmo de forma relutante e num tom a fugir-lhe para a ironia, admite que se tratou de uma “consagração oferecida por um Coliseu inteirinho”.

“Prioritariamente, pretendíamos fazer dois bons espetáculos e, creio, fomos bem-sucedidos. Apesar do mau tempo, oito mil pessoas assistiram aos concertos, cujas gravações estão, segundo os técnicos, bastante aceitáveis”, diz Rui Reininho a Carlos Maciel, que faz saber aos leitores da TV Guia que o show dos GNR foi “a todos os níveis ímpar”. “Foram duas, mas valeram por mil e uma noites. Enquanto Lisboa escurecia triste e cinzenta, o Coliseu dos Recreios iluminou-se”, escreve. Datas vitoriosas para o grupo, que recebeu no palco da “catedral” da música o disco de prata pelas vendas de Valsa dos Detectives. E escolheram um surpreendente protagonista para esse momento de consagração de um disco pouco amado pela crítica: Vata, estrela do futebol benfiquista. Os GNR não são do FC Porto? A questão é outra: “Há uma analogia entre o disco A Valsa dos Detectives, Viena (a terra das valsas) e o Benfica, que vai a Viena por causa da mão de Vata”, esclarece Rui Reininho à TV Guia. (“É preciso dizer que ele foi de uma simpatia extraordinária. Esteve duas horas a comer croquetes, à espera de entrar em cena…”, acrescenta.) “Mais uma aposta ganha do grupo responsável por um dos melhores concertos que Lisboa já viu”, aprecia Carlos Maciel. Viu a capital e verá o Porto, na praia do Molhe, num “São João na Foz antecipado” (designação do Jornal de Notícias), na noite de 22 de Junho. Um espetáculo oferecido aos portuenses pela Unicer. O resultado é tão satisfatório que a mesma parelha (Unicer e GNR) começará de imediato a projectar o mais memorável concerto do ano (não o sabendo), a acontecer na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa. Antes disso, a banda dá mais uma volta ao país e ultima o lançamento de In Vivo, o duplo LP que resulta da gravação dos concertos no Coliseu dos Recreios (ao contrário do que chegou a ser ventilado, não é aproveitado qualquer registo do concerto do ano anterior no Coliseu do Porto). José Manuel Henriques é o produtor executivo; Fernando Rascão, José de Carvalho e Miguel Gonçalves os responsáveis pela gravação; a mistura é de Mário Ângelo, em conjunto com os próprios GNR; a masterização fica a cargo do mui experimentado Fernando Cortez; o arranjo gráfico é de Pedro Afonso, que para a capa trabalha sobre uma fotografia de Rui Esteves. Tudo certíssimo. Só um problema: a Rapsódia que está no lado B do segundo vinil contém temas que são propriedade intelectual de… Vítor Rua: Portugal na CEE e Sê Um GNR. O cofundador exige que sejam retirados do alinhamento, mas o álbum sai assim mesmo a 12 de outubro.

Em bom rigor, esta contenda tem início em 1982, quando o guitarrista e baixista decide abandonar a banda (ou, na sua versão, suspender-lhe indefinidamente a atividade). Mas ganha contornos legais quando chega ao apartamento dos pais de Rui Reininho, na porta 19 da Rua de Fernandes Tomás, uma carta da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) em que esta previne: “Agindo na qualidade de mandatários do nosso membro Vítor Rua, vimos pelo presente informar V. Exas. de que é interdita a execução pública de obras deste autor. Caso se verifique nova execução das mesmas, reconheceremos ao nosso membro os direitos que lhe são conferidos pelo actual Código do Direito de Autor no sentido de um procedimento legal”. A missiva, registada e com aviso de recepção, leva a assinatura do chefe de secção do Contencioso Administrativo, Henrique Marques, e data de 16 de maio de 1986. Nesse mesmo ano, Rua regista o nome GNR – Grupo Novo Rock, Produções Musicais no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual. A 26 de Maio de 1989, Rui Manuel Reininho Braga, António Luís Patrício da Silva César Machado e Jorge Eduardo Romão da Conceição constituem a sociedade por quotas GNR – Grupo Novo Rock, Limitada. Também em 1989, Vítor Rua edita o máxi Clássicos GNR, que inclui uma versão de Portugal na CEE e Sê Um PSP. No ano anterior, sob a designação PSP (Projecto Som Pop) e com o selo da Ama Romanta de João Peste, tinha editado Pipocas, onde se encontram Portugal na CEE (mais uma vez), Avarias 2 e Pico Fininho. O guitarrista investe muita da sua energia no confronto com os actuais GNR. Alexandre Soares, pelo contrário, dá uma entrevista ao Blitz em fevereiro de 1988 em que diz que se dá bem com Reininho, Tóli e Romão: “Eu saí para nos darmos bem. Se estivesse lá não estaria a dar, e assim está a dar. Havia muita contenção. E desse modo seria mau para mim e para eles”. Quando o jornalista Luís Maio lhe pergunta se se pode estabelecer um paralelo entre o seu percurso e o de Vítor Rua (afinal, são dois dos três fundadores dos GNR), Soares afasta-se da proposição e denuncia um recente aproveitamento mediático que o envolveu: “Não penso no gajo, sabes? A proposta que me fez de tocar com ele, se calhar, era só para sair no jornal. E eu sou contra isso, fiquei mesmo lixado. Uma proposta privada entre dois músicos, acho piada. Agora o gajo falou comigo em Lisboa, no dia seguinte cheguei ao Porto e li no jornal o que tínhamos falado. Fiquei fodido de a coisa ter saído assim. Eu tenho telefone, não é? Não custava nada ter perguntado…” Nesta altura, o guitarrista está a trabalhar no primeiro álbum a solo (Projecto Global), que inclui uma canção com letra de Mafalda César Machado, irmã de Tóli. No ano em que rebenta a polémica entre os GNR e Vítor Rua, 1990, e depois de ter composto a banda sonora da peça de Coração na Boca com letras de Reininho, Soares sofre um grave acidente de viação que o impossibilitará de tocar até 1992. Fica a fazer o som dos Ban. O regresso ao ativo acontecerá com os Três Tristes Tigres.

Invertendo o passado, vivendo o futuro

Ainda antes dos concertos no Coliseu, Rua insiste numa declaração a O Primeiro de Janeiro: “O GNR é meu, não me demiti — demiti o grupo. Posso fazer voltar o GNR a qualquer altura.” O artigo em que é publicada, de 24 de novembro de 1989, lança achas para a fogueira: o título é “GNR contra GNR”. Tanto que um terceiro elemento (o segundo é Rui Reininho, citado naquele texto) sente necessidade de intervir — Jorge Lima Barreto. O músico vanguardista que formou os experimentais Telectu com Vítor Rua endereça “cerca de 10 folhas datilografadas” ao diário portuense, que lhe oferece duas páginas inteiras da edição de 22 de Dezembro, uma espécie de direito de resposta sem réplica em que Lima Barreto discorre, num discurso pretensioso e paternalista, sobre o “mundo jaggeriano dos GNR de Reininho”. Acusa o vocalista de “levar ao máximo as suas aspirações pequeno-burguesas a vedeta nacional”, desdenha as opções estéticas da banda — “Os GNR degradam- se progressivamente” — e diz que Vídeo Maria foi uma “banalidade confrangedora”, um “truque publicitário pour épater le bourgeois” após “terem engolido a hóstia ao lado do genuflexório do Freitas do Amaral” (leia-se: terem atuado em comícios da campanha presidencial do centrista). No entanto, no meio de toda a bílis encontra-se uma revelação: Vítor Rua mandatou-o em 1988 para diligenciar no sentido de umas “possíveis tréguas”. Como? Vendendo a patente registada em 1986, que ainda aguarda publicação em Diário da República à data da publicação desta “carta aberta”. Lima Barreto dirige uma proposta à EMI-Valentim de Carvalho, que declina a oferta. “Devolvo o registo ao Vítor.” Rua voltará a tentar vender o que entende serem os seus direitos sobre os GNR em 1990.

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