Uma eleição atípica e em aberto

“Americanismo, não o globalismo, será o nosso credo”. Esta foi a frase, proferida na convenção republicana de finais de Julho, em que Donald Trump mais se aproximou de expressar um arremedo de filosofia política ou uma ideia central da sua candidatura. Os meses anteriores tinham sido dedicados a derrubar um a um os seus adversários internos numa mistura agressiva e bem eficaz de insultos, insinuações e teorias da conspiração, capacidade de entretenimento, sentido do espectáculo e populismo desbragado. Nesta eleição de 2016, a celebridade televisiva varreu a paisagem política como um furacão.

Vale a pena aqui lembrar que, apesar de bilionário, homem de negócios há décadas e personalidade do meio social nova-iorquino, a maior parte dos americanos conheceu Trump como apresentador de um reality show por 14 anos, ou seja, através de um programa de TV montado, editado e produzido para ganhar audiências e fazer a sua estrela brilhar – a televisão, ainda e sempre a televisão, como autora e produtora de fenómenos sociais.

O americanismo da variedade Trump tem uma forte componente nacionalista. Afirma-se contra o exterior, o desconhecido, contra o Outro (imigrante, latino, afro-americano ou muçulmano). Usa perigos reais e mistura-os com temores imaginários (e por vezes até delirantes) para, num potente cocktail de medo e agressividade, lançar uma agenda proteccionista e isolacionista. Acrescente-se a venda da imagem de um líder forte (as declarações de simpatia por Putin são, neste contexto, tudo menos ingénuas) e está criado o discurso que tem, para espanto de grande parte do resto do Mundo, feito bastante sucesso neste ciclo eleitoral na América.

As razões deste sucesso são muitas e variadas mas uma parece central – o sentimento de impotência de largas fatias da população perante a globalização, a abertura dos mercados, a deslocalização de empresas e as crises provocadas pelo sistema financeiro. Estudos recentes do economista Branko Milanovic mostram como entre 1988 e 2008, a era a que ele chama de “alta globalização", as classes médias da Europa Ocidental e dos Estados Unidos viram os seus rendimentos estagnados. Em contraste com a evolução positiva dos rendimentos dos mais ricos e mais pobres dessas sociedades e dos mais pobres do Mundo como chineses e asiáticos, latino-americanos, africanos e europeus do Leste.

Este grupo que nos Estados Unidos é, grosso modo, constituído por cidadãos de população branca sem qualificações universitárias, não tem encontrado benefícios para si nos movimentos de abertura comercial e de globalização económica e financeira. Antes pelo contrário, assiste ao encerramento de indústrias e à sua deslocalização e, frequentemente, sente-se impotente para se converter a tempo de beneficiar de uma nova economia emergente de serviços de alta tecnologia e impiedosamente competitiva. A crise económica e financeria de 2008 agravou esse sentimento de revolta contra as elites favorecidas pela economia global (e que nada parece afectar) e explica em grande parte a sua revolta contra o establishment e a favor de uma postura mais proteccionista. Este eleitorado está muito presente em alguns estados decisivos para a vitória no colégio eleitoral – Ohio, Iowa, Michigan, Pensilvânia.

Donald Trump percebeu bem onde estava o seu mercado eleitoral. O seu eleitor clama por mudança. Uma mudança indefinida feita da rejeição do status quo e assente numa nostalgia que mitifica um tempo passado de segurança económica e paz social. Paradoxalmente, esta revolta tomou conta do Partido Republicano, aquele que no período de 1980 a 2008 mais batalhou pelo comércio livre, pela liberalização económica e pelo avanço da globalização. Mesmo que não venha ganhar, a ascensão de Trump provocou realinhamentos no sistema partidário americano impensáveis até há algum tempo – o Partido Republicano que era o epítome do establishment norte-americano conservador nos costumes e liberal na economia será, pelo menos durante algum tempo, o porta-voz dos revoltados com o Mundo e dos receosos do futuro.

Mas a eleição de 2016 não será atípica apenas pela presença de um candidato como Trump. A baixa popularidade dos candidatos dos dois principais partidos (Trump é ainda mais impopular que Hillary Clinton) abriu caminho para a aparição de mais dois candidatos com alguma expressão – Gary Johnson do Partido Libertário e Jill Stein do Partido Verde. Desde 1992 e 1996 (com Ross Perot) que não existe um terceiro candidato com votações tão elevadas quanto as pesquisas antecipam para Gary Johnson. Esta eleição terá de ser pensada como uma eleição a quatro em que os votos dos candidatos menores poderão influenciar o resultado final por desviarem votos decisivos de Trump ou de Clinton. Em 2000, Ralph Nader desviou votos suficientes para que George Bush e Al Gore terminassem quase empatados (o resto da história já conhecemos).

É óbvio que Hillary Clinton se sente mais à vontade em discussões sobre opções de política de Estado e sectorial do que em comícios ou actos de campanha eleitoral. Apostou em fazer da sua experiência, das suas óbvias qualificações e preparação para o lugar e da sua personalidade já testada activos que lhe garantam a eleição. É a sua melhor carta. Continua favorita nos mercados de aposta. Mas a tarefa de Hillary Clinton não é trivial – desde a II Guerra Mundial só uma vez o mesmo partido ganhou três vezes seguidas as presidenciais (nos anos 1980 o Partido Republicano com dois mandatos de Reagan e um de Bush-pai). E neste ciclo eleitoral grande parte do eleitorado parece atraído por um discurso de revolta contra as elites (alerta de ironia: esse discurso é corporizado por um bilionário que herdou uma fortuna...) – este ambiente não favorece alguém que há 25 anos tem uma posição de destaque no sistema político americano.

A candidata democrata está a ter alguma dificuldade em fazer reviver a coligação que ajudou a eleger Obama – grande mobilização de jovens, afro-americanos e latinos. Os jovens, que detestam Trump mas não parecem muito entusiasmados com Clinton, terão transferido o seu apoio de Bernie Sanders para o candidato libertário Gary Johnson que, com cerca de  11-13% das intenções de voto no eleitorado em geral, conta com o apoio de mais de um terço do eleitorado entre os 18 e 30 anos, segundo os últimos estudos.

Mas pode ser que a capacidade de Trump em ofender e alienar grandes sectores do eleitorado chegue para uma vitória de Clinton. Pode ser que os jovens, com o aproximar da eleição, acabem por largar Gary Johnson e adiram a Clinton. Pode ser que Obama, que termina o mandato com um nível de popularidade que há muito não se via num Presidente em exercício, consiga transferir votos para a sua candidata. Pode ser que os dados económicos favoráveis ajudem a desanuviar o ambiente – esta semana foi divulgado que o rendimento mediano americano subiu 5,2% em 2015, o maior aumento de rendimento alguma vez registado. Pode ser que os debates favoreçam Hillary ou.... pode ser que não. E se não, apertem os cintos.

Nuno Mota Pinto é economista e vive em Washington DC

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