Morte de um comando sem explicações do Exército há 28 anos

Família não teve conhecimento do relatório do inquérito, que o então ministro da Defesa Eurico de Melo disse não ter e que o entregava ao presidente da Assembleia da República “para lhe dar o fim que muito bem entender".

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Rui Gaudêncio
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Recortes dos jornais da época a contar o caso DR
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Como aconteceu neste mês de Setembro com Dylan Silva e Hugo Abreu no curso de Comandos, dois jovens morreram em Abril de 1988 durante a instrução no Campo de Santa Margarida. Ainda era Primavera mas estava calor nesse dia em que tentavam terminar a "prova de choque". Dois dias antes de morrer e a propósito dos exercícios de preparação para essa prova, Joaquim Bastos escrevia nas páginas do seu diário: “Saí de lá completamente alienado. Meu Deus, meu Deus, não me abandones.” Quando chegou, dois meses antes, descrevia nas páginas do mesmo diário "um ambiente novo", onde se sentia “praticamente abandonado”.

O jovem de 22 anos morreu a 14 de Abril de 1988 durante uma das marchas consecutivas (que alternam com corrida) nessa prova de três dias no Campo Militar de Santa Margarida. Durante o exercício, o seu colega e amigo Luís Barata caiu a poucos metros dele. Faleceu no mesmo dia. Os dois estavam entre os melhores instruendos do 89.º Curso de Comandos iniciado em Fevereiro.

No início de Maio, quando ainda não eram conhecidas as causas das mortes, o general Fausto Marques, instrutor do inquérito, atribuiu a tragédia a “excesso de generosidade” dos dois comandos, “desejo de ser o primeiro” e “não utilização dos meios postos à disposição”, numa entrevista à Lusa publicada em vários jornais. “Não encontro outra explicação para a morte dos dois instruendos”, disse o militar, explicando que ainda não havia resultados das autópsias por ainda estar o Instituto de Medicina Legal (IML) em Lisboa a proceder a "complexas e demoradas análises".

Depois de apresentar as condolências à família, a instituição militar manteve o silêncio face aos pedidos do pai, irmãs e tios de Joaquim Bastos que era órfão de mãe desde os três anos. “Só queríamos saber a causa da morte do Quinito”, nome pelo qual amigos a família o tratava desde pequenino, diz Cândida Bastos, que tinha 23 anos quando o irmão morreu. “A nossa pretensão era que nos dessem a informação mínima”, acrescenta Olga Bastos, tia de Joaquim. “Ficámos a aguardar um tempo para nos darem informação – o tempo para a autópsia estar pronta. Passaram-se meses, e não nos disseram nada.” O pouco que souberam, leram nos jornais, diz.

O gabinete de Relações Públicas do Estado-Maior do Exército diz que "não competia ao Exército comunicar às famílias o relatório da autópsia dos militares". Em respostas enviadas por email ao PÚBLICO, acrescenta que "a informação prestada da causa foi a de 'morte por exaustão', conforme o relatório da autópsia". A instituição diz ainda que "os referidos acidentes foram decorrentes de acidente em serviço, durante a instrução militar no Campo Militar de Santa Margarida, tendo as respectivas famílias sido contactadas após a ocorrência do óbito dos militares" e que os dois jovens "vieram a falecer no Hospital de Abrantes, após a sua evacuação daquele campo militar". O EME acrescenta que "as famílias foram contactadas pelo Delegado de Apoio à Família nomeado, tendo acompanhado as famílias durante todo o processo, entregue os pertences e dando início ao processo por pensão de sangue". 

Nas investigações pessoais que fizeram, os familiares souberam de forma informal que Joaquim Bastos teria três costelas partidas quando faleceu e que andava a sofrer ameaças por parte de um instrutor. Olga Bastos diz que o sobrinho terá sofrido uma hemorragia interna que teria acabado por asfixiá-lo e que houve tentativas de reanimá-lo, mas ele terá perdido a vida no campo, ainda antes de chegar ao Hospital de Abrantes. São peças que a família tentou juntar, não confirmadas pelo Exército.

Para saber a verdade, diz Olga Bastos, a família contactou o advogado Garcia Pereira (que o PÚBLICO tentou ouvir sem sucesso) e que terá encontrado “sempre obstáculos” sem conseguir aceder aos documentos sob o argumento da confidencialidade.

"Complicadas malhas das teias militares"

“Com efeito, não é fácil transpor as complicadas malhas das teias militares, tanto mais quando se pretende esclarecer situações duvidosas e que, a serem descobertas as causas, podiam fazer rolar algumas patentes”, escreve Garcia Pereira, numa carta de 16 de Abril de 1991 dirigida ao pai de Joaquim Bastos. “Aliás, a consulta do processo já findo e pendente da Polícia Judiciária Militar de Coimbra foi-me recusada com manifestas subtilezas”, acrescenta.

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Recorte de jornal que conta o caso de 1988 DR

Num comunicado distribuído à imprensa em 17 de Junho de 1988, o Estado-Maior do Exército (EME) diz que “não encontrou em todo o processo relativo” a estas mortes, “qualquer ilícito disciplinar imputável a qualquer militar – instrutor, monitor ou qualquer outro militar”. O relatório final sobre a morte dos instruendos do Regimento de Comandos entregue pelo Chefe de Estado-Maior do Exército foi entregue em mãos ao ministro da Defesa Eurico de Melo, “que não o leu” e o entregou ao presidente da Assembleia da República “para lhe dar o fim que muito bem entender”, escreve O Comércio do Porto de 18 de Junho. O CEME demonstrou vontade de dar conhecimento público do relatório de averiguações, acrescenta o jornal, de acordo com o ministro que “achou por bem” entregá-lo ao presidente da Assembleia.

O pai de Joaquim Bastos escreve, dois dias depois, ao procurador da República de Abrantes, dando conhecimento da mesma ao ministro da Defesa, Eurico de Melo. Nunca recebeu respostas. Na carta, pede que seja instaurado "um rigoroso inquérito para apuramento das responsabilidades sobre os factos ocorridos no dia 14 de Abril e dos quais veio a falecer seu filho na prova de marcha". E acrecenta: "Em virtude de ter, seguramente, havido negligência grave e omissão de auxílio por parte dos responsáveis quer do Centro de Comandos, quer dos que directamente tinham a seu cargo a referida marcha, seu acompanhamento e direcção [instrutores] por não lhe terem prestado atempadamente os necessários e devidos socorros que poderiam ter evitado a sua morte."

“Não me esqueço da imagem que me ficou dele a descer as escadas de costas para a porta e sempre a olhar para mim, no último dia que veio a casa. Qualquer coisa o preocupava no olhar quando acenou e disse ‘ vemo-nos no próximo fim-de-semana’”, lembra Olga Bastos. “Ele estava mesmo apreensivo. E disse algo que não dizia habitualmente quando vinha a casa, para avisarem a namorada se lhe acontecesse alguma coisa."

Era 1h00 da madrugada de 15 de Abril, cerca de quatro horas depois de ter sido declarado o óbito de Joaquim Bastos. "Estávamos a dormir. Bateram à porta. Era a GNR", conta a irmã de Joaquim. Nessa mesma casa, onde a família soube a notícia, o quarto de Joaquim nunca foi desfeito, com os escritos dele, com a viola dele, conta a tia. “Quando vinha a casa, ele falava, mas não nos queria preocupar. Soubemos da dureza e da violência dos exercícios através do diário que ele escrevia. Analisando o diário, a mochilinha e outros pertences dele conseguimos tirar mais algumas conclusões sobre o que estaria a acontecer com ele.” Os mesmos escritos, a mesma mochila que a família ainda mantém, com a viola, no quarto dele e que ainda é o que era há 28 anos, em casa do pai em Celorico de Basto.

Agressões e excessos negados

No mesmo comunicado de dia 17 de Junho, sobre as conclusões do processo de averiguações - semelhante ao que foi aberto agora nos casos de Hugo Abreu e Dylan Silva -, o Exército rejeita as possibilidades de agressão e coloca, sem confirmar, as hipóteses de hipoglicemia e de desidratação e insolação, sem excluir igualmente o cenário de exaustão. Rejeita excessos às normas e como prova disso lembra que já tinha sido decidida “uma redução do tempo de permanência no campo de 72 para 60 horas”. No mesmo documento, são avançadas recomendações e decisões: por um lado, é extinto o Centro de Instrução de Comandos de Santa Margarida, passando a instrução para a base no Regimento de Comandos na Amadora; e por outro a incorporação de elementos que cumpram o serviço militar obrigatório nas forças “Comando” deixa de ser obrigatória e passa a ser através de voluntariado. Nesse mesmo ano, um terceiro jovem morre, afogado durante um exercício. Em 1993, o curso é extinto e retomado em 2002.

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