À espera de Mr. Robot

Com personagens e situações da série de televisão, 1.51exfiltrati0n exulta desenvolvimento narrativo próprio, mas peca na hora de oferecer um ritmo de progressão coeso.

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Ninguém conseguiu antever a nervura de Mr. Robot, série de televisão que continua a encantar críticos e audiência. Muitas teses foram atiradas ao teclado sobre quem seria Mr. Robot, mesclando boa-vontade com deduções lógicas: afinal, quais seriam as suas verdadeiras ligações ao protagonista da série, Elliot Alderson? Quando o pano caiu sobre a temporada de estreia, estas verdades foram reveladas ao espectador, algo que não diminuiu o interesse no segundo tomo.

Sim, agora sabe-se quem é Mr. Robot, sabe-se que teia Elliot ajudou a urdir no ataque informático do século, devastando a E Corp, colocando-a de joelhos. Contudo, Sam Esmail, criador que entretanto assumiu definitivamente a realização, ainda tinha alguns trunfos na manga. Portanto, a série é francamente recomendável, mas o que escrever sobre Mr. Robot: 1.51exfiltrati0n, o jogo disponibilizado nos dispositivos Android e iOS?

Associar-se a uma obra de entretenimento adorada e estimada por tantos é sempre um exercício de não defraudar expectativas e, para o conseguir, a produtora Night School Studio, que assinou Oxenfree, associou-se à Telltale Games, casa reconhecida pelas adaptações a videojogo de The Walking Dead, A Guerra dos Tronos e Batman, entre outras propriedades intelectuais. Ou seja, não é coincidência que sejam dois estúdios reconhecidos pelo âmago narrativo das suas obras.

Levar-vos ao videojogo é traçar uma linha indissociável ao que tem alimentado o televisor, pois o argumento de 1.51exfiltrati0n envolve personagens e eventos da série, levando quem joga a navegar aquele mundo, sucumbindo à vontade de fazer parte do ataque à E Corp. É possível desfrutá-lo sem conhecimento prévio, mas será sempre uma experiência menor, muito menos impactante na hora do argumento dar o nó final depois de enlaçar a curiosidade do jogador.

Conhecendo as plataformas onde o lançamento foi feito, a Night School Studio mimica um dos cenários mais usados nos smartphones: as mensagens por texto. Tal como em Lifeline, por exemplo, o jogo coloca-nos a receber e a enviar pequenas mensagens a várias personagens, sendo o ritmo ditado pela obra, como se quem está no outro telefone tivesse vida própria e não estivesse dependente dos nossos pedidos, exigências e urgências.

1.51exfiltrati0n começa com o jogador a apanhar um telefone na rua. Não demora muito a chegar a primeira mensagem, avisando-nos que aquele telefone afinal tinha dono por perto. A sua proprietária precisa desesperadamente de um ficheiro que agora está na nossa posse. Inicialmente não conhecemos o seu nome, o que adensa o mistério. Não sabíamos na altura, mas ao longo dos próximos dias – virtuais e reais – somos arrastados para o olho do furacão, uma mensagem de cada vez.

O maior trunfo da obra é o seu argumento, não só oferecendo um arco narrativo com várias menções aos eventos que conhecemos da série, como recorrendo a uma escrita tão cuidada que emula os erros de quem escreve à pressa, o vernáculo de quem pressiona o ecrã antes do pensamento chegar ao fim. Nas suas essências, série e videojogo partilham a tecnologia e o sentimento que, apesar de estar no centro, tem ramificações emocionais acutilantes.

Sabendo quem produziu e quem publicou o jogo, não é difícil adivinhar que teremos algumas escolhas difíceis pela frente. É-nos pedido para usar as nossas habilidades sociais para enganar outras pessoas, vestindo a pele de cordeiro para as iludir e garantir acesso a credenciais. É uma mentira, claro, mas é também um exercício digital com variáveis que remexem com sentimentos reais: a personagem ludibria com comandos que nós, os de carne e osso, pressionaram no ecrã táctil.

Do outro lado há o risco de despedimento, de atestados de incompetência, e nós de olhos colados ao ecrã com o dedo a pairar sobre a opção que melhor reflecte a nossa natureza. O golpe, o grande golpe, chega quando nos cai no colo informações sobre a associação de uma dessas personagens à prostituição, revelando também a sua fibra pouco moral. Noutro contacto temos o seu filho e à distância de um botão podemos contar-lhe a verdade sobre o pai. Destruímos uma família chapando a verdade perante um par de olhos infantes ou deixamos que um pai continue a trair uma mulher e a mentir a um filho?

Percebem agora? Mr. Robot não é sobre computadores e telemóveis, mas sim sobre o que essas plataformas veiculam. 1.51exfiltrati0n não é o negrume em formato de aplicação. Outros contactos espelham aplicações de encontros amorosos, spam com ofertas de dinheiro imediato, livros em atraso na Biblioteca de Nova Iorque, entregas de comida e uma conversa em grupo usada por amigos que vivem a hora do palhaço, sem filtros, brincando entre si, arrastando-nos para o seu núcleo. Tudo intermitente, tudo cheio de piadas de punchline questionável, notificação no telefone porque alguém pensou boa ideia oferecer uma almofada com um desenho fálico.

É o contraponto cómico para a tensão inerente a vestirmos outra pele e mentir em nome dela. Podemos ser austeros ou vestirmos a pele de amiguinho enquanto recebemos pedidos das personagens da série que obrigatoriamente têm que passar por nós. Não escolhemos este desabrochar de problemas e soluções quando pegamentos no telefone, mas damos o nosso melhor enquanto 1.51exfiltrati0n traz à tona o nosso pior.

Se por escassos momentos não houver o pensamento que estamos a trocar mensagens com a ficção, mas sim com pessoas que poderiam estar na lista de contactos de alguém, o jogo ganha. E ganha várias vezes. Infelizmente, a narrativa, por muito boa que seja, precisa de cadência para surtir o melhor efeito possível, algo que nem sempre é conseguido, levando o progresso a rastejar quando tinha tudo para correr.

Compreendo que a produtora queira dar a sensação de que estes intervenientes tenham vida, tal como já referi, contudo, estar cinco, oito, doze, vinte horas à espera de uma mensagem é meio caminho andado para a ânsia se transformar em frustração, para o ímpeto de querer saber mais mutar-se no desconforto da pedra no sapato.

Joguei 1.51exfiltrati0n duas vezes e por duas vezes fui confrontado com os períodos mencionados entre algumas mensagens. É verdade que quando chegam é possível ter uma conversa a ritmo alucinante, apenas para depois as personagens desaparecerem e o carimbo temporal da última mensagem ser “há 1 dia”. É muito – demasiado – tempo. Equacionando a hipótese que é um erro que aconteceu nas duas vezes, bem, o jogador que investe o seu dinheiro merece ser avisado de igual forma, porque ou o jogo gere muito mal o ritmo ou foi publicado como não era devido.

Então, 1.51exfiltrati0n é bastante bom nos momentos em que nos arrasta para o seu mundo, levando-os numa viagem que desafia com várias opções a tomar, fazendo-nos importar por personagens que se afirmam e se agigantam pelo seu desenvolvimento narrativo, algumas complementadas pelo que conhecemos da série. Infelizmente e contrariamente ao que já vimos na televisão, a cadência de desenvolvimento tem vários soluços que enervam e descompõe, que nos fazem pensar em imitar o discurso de Elliot com Krista. E o ficheiro tão procurado é afinal... [sessão terminada]. 

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