Paralímpicos, paratotós

Recentemente, um jornalista português referiu-se aos Jogos Paralímpicos com um espetáculo “grotesco” e “um número de circo”.

Estão ainda a realizar-se no Rio de Janeiro os Jogos Paralímpicos (JP). Trata-se de um evento que mobiliza muitos milhares de pessoas e que tem um impacto mediático incomparável com qualquer outra notícia que tenhamos acesso sobre as pessoas com condições de deficiência.  Trata-se, sem dúvida, de um evento que desafia ideias feitas sobre a competição e a seleção “dos melhores”. Os JP atraem polémicas sobre múltiplos aspetos da atividade humana.  Dou um exemplo: na cerimónia de abertura uma das portadoras da tocha olímpica que, com a ajuda de uma bengala, a conduzia com dificuldade, caiu durante o percurso. Perante o aplauso do estádio, levantou-se e levou a tocha até à pessoa seguinte. E pode-se perguntar: mas os aplausos não eram destinados aos que vão mais longe, aos que são mais fortes e aos que chegam mais alto (usando a trilogia dos Jogos Olímpicos da era moderna)?

Já tínhamos tido um indício da promoção de outros que não os “vencedores” na abertura dos Jogos Olímpicos quando a chama olímpica foi ateada por Vanderlei Lima, que tinha sido “só” medalha de bronze na maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004. Relembrando, Vanderlei foi agarrado por um energúmeno quando ia em primeiro lugar na maratona e mesmo assim ficou em terceiro lugar. O que este realce mostra é que os Jogos são muito mais do que a celebração dos triunfadores, mas, como dizia Coubertin, o seu grande valor é a participação e a superação de cada um.

Quando pessoas com deficiência praticam este exercício de superação das suas capacidades pessoais suscitam múltiplos olhares e nem todos muito adequados. Cito dois deles: um que endeusa os atletas paralímpicos, dizendo que eles são os super-heróis, que são sobre-humanos. Quem diz isto, imaginaria que as pessoas com deficiência teriam igualmente uma deficiência na sua motivação, na sua determinação, no seu querer. Ao verem esta vontade férrea, imaginam que as pessoas com deficiência são mais que humanos. Na verdade – pensam elas – que humano teria esta tenacidade mesmo face a uma condição de deficiência? Esta atitude curiosamente retira aos desportistas com deficiência a posse das qualidades que lhe são comuns com qualquer outro desportista e por isso é, de certa forma, uma atitude que semeia a exclusão.

Outra é a atitude de grande desconforto, de perplexidade, por presenciar o desempenho de atletas com deficiência. Recentemente, um jornalista português referiu-se aos JP com um espetáculo “grotesco” e “um número de circo”. Não custa imaginar o desconforto destas pessoas ao ver um cego jogar futebol, ao ver um atleta com paralisia cerebral a jogar Boccia, ao ver um amputado de membro inferior a saltar em altura. Imagino o desconforto, mas não posso igualmente de deixar de imaginar a enorme ignorância e desumanidade que estas declarações demonstram.

Para as pessoas que acham que o lugar das pessoas com deficiência não são os espaços desportivos, para quem pensa que desporto não é para elas, deixo quatro pontos de reflexão.

Antes de mais as pessoas com deficiência têm direito, como quaisquer outras, a praticar desporto. Não aceitar isto seria uma grave violação dos seus direitos. Se não existisse este movimento paralímpico as pessoas com deficiência ficariam privadas da prática desportiva, ou pelo menos amputadas de uma das suas vertentes que é o desporto de alta competição. Será que alguém assume esta responsabilidade de amputar direitos a quem já tem tantos direitos amputados?

As pessoas com deficiência não se colocaram à margem do desporto: foi o desporto que as excluiu. Daí que o movimento do desporto paralímpico não seja um movimento de exclusão, mas sim de inclusão – isto é, de procurar recuperar uma prática que, se a nossa sociedade fosse menos segregadora, seria feita em estruturas e na companhia de atletas sem deficiência.

Os JP são uma fantástica contribuição para entender até onde os humanos (mesmo tendo uma condição de deficiência) podem chegar. Quantos estudantes universitários de desporto saltam, por exemplo, como um amputado de membro inferior, a marca de 1,89 metros? Os Jogos são uma fantástica demonstração das possibilidades quase ilimitadas que o ser humano pode desenvolver através da experiência e do treino.

Finalmente os Jogos Paralímpicos são uma cabal demonstração que o terno “de-ficiente” (“não eficiente”) é extraordinariamente injusto para designar quem de forma tão espetacular escancara os limites do desempenho humano. Os Jogos Paralímpicos mostram que, tal como o desporto, as pessoas com deficiência são úteis e são imprescindíveis para entendermos o que é “ser humano”.

Os jogos não são circo a não ser que consideremos circo todas as atividades humanas. Por exemplo: a vida de jornalista é um circo?

Os jogos não são grotescos. Grotesca – ainda que menos visível – é a segregação que estas pessoas sofreram e sofrem tendo sido injustamente condenadas a “vidas separadas”. Grotesca é a exclusão, grotesca é a invisibilidade a que milhões de pessoas estão condenadas a ser vistas como deficientes mesmo sendo “eficientes” e muitas vezes mais eficientes dos que aqueles que se permitem chamar grotescas às suas ações.

Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial, embaixador paralímpico em Pequim 2008

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