Portugal vai ter uma bienal de arte contemporânea – ponto

As artes performativas e as artes visuais saem das suas respectivas zonas de conforto na primeira edição da BoCA, que decorre de 17 de Março a 30 de Abril entre Lisboa e Porto. Tania Bruguera, François Chaignaud, Salomé Lamas e Musa paradisiaca serão os artistas residentes.

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John Romão, o director da BoCA NUNO FERREIRA SANTOS

Actor, performer, encenador, bagagem de 15 anos de trabalho que poderíamos arrumar por comodismo na gaveta do teatro ou, mais genericamente, na das artes performativas, John Romão nunca se sentiu um forasteiro no museu ou na galeria. E é justamente por estranhar este fenómeno de em pleno século XXI, depois de todas as mutações genéticas que a prática artística assimilou desde os anos 1960 (e de a palavra transdisciplinar ter passado a integrar o jargão mais elementar do meio), as artes performativas e as artes visuais continuarem a viver vidas paralelas que Portugal vai ter “uma bienal de arte contemporânea – ponto”: “Sempre estranhei que os públicos dos dois campos artísticos fossem tão diferentes. Não é normal que essa sectarização esteja ainda tão alicerçada”, justifica.

De 17 de Março a 30 de Abril do próximo ano, portanto, a primeira edição da BoCA ligará Lisboa e Porto, pondo em rede cerca de três dezenas de instituições e espaços de apresentação não só das duas cidades como dos dois lados da barricada – do Teatro Nacional de São Carlos ao Passos Manuel, da Casa da Música às Galerias Municipais da capital, unindo os pontos de um mapa que põe no mesmo patamar de importância “a performance das duas da manhã numa discoteca e a instalação das duas da tarde no museu”. Mas o que torna a missão da BoCA verdadeiramente aventureira é o princípio de que cada criador a apresentar ao longo dessas seis semanas sairá assumidamente da sua zona de conforto – e será assim que veremos a dupla de artistas plásticos João Pedro Vale/Nuno Alexandre Ferreira a montar um espectáculo de circo, Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre, numa tenda a instalar em Lisboa e no Porto, ou multitasker (a etiqueta de "cineasta" serve apenas para início de conversa...) Gabriel Abrantes transformado em encenador de uma co-produção com o Centro Cultural de Belém (CCB) e o Teatro Municipal Rivoli. E ainda, para enumerar os quatro artistas residentes neste primeiro biénio, a realizadora Salomé Lamas a estrear também no CCB a sua primeira peça de palco, o bailarino e coreógrafo francês François Chaignaud a cruzar-se com a maestrina Joana Carneiro, o colectivo Musa Paradisiaca (Miguel Ferrão e Eduardo Guerra) a desenhar um monumento habitável onde poderão acontecer acções performativas pensadas em diálogo com as instituições de acolhimento da estrutura, e a artista cubana Tania Bruguera, até aqui internacionalmente associada à instalação e à performance, a encenar o Fim de Partida de Beckett no Mosteiro de São Bento da Vitória.

Não são, sublinha John Romão, aventuras completamente inesperadas, tendo em conta o percurso anterior dos artistas em causa. “O que lhes estou a propor são coisas que estão lá, em evidência ou em potência. E o entusiasmo com que têm aceitado as propostas leva-me à conclusão de que os próprios artistas têm alguma ânsia de entrar em territórios que não dominam perfeitamente – não como um desvio inédito que não será para repetir mas como experiência a integrar no seu corpo de trabalho”, argumenta o programador da BoCA, que sempre lamentou que os seus espectáculos não fossem vistos, por exemplo, pelo público que vê a encher os concertos da ZDB ou do Maria Matos.

A BoCA, insiste, pretende justamente forçar o cruzamento e a justaposição – de espaços (museus, galerias, teatros, bares, espaço público), de artistas, de públicos, de instituições – numa altura em que “cada vez mais artistas escolhem linguagens que estão fora do seu campo natural de acção” e cada vez mais espectadores estão “à vontade” com programações transversais. Ao contrário, diz, das instituições – imprensa e crítica incluídas –, que continuam a resistir a uma narrativa menos sectária da criação artística e não entranham, estranham, o que não é facilmente catalogável: “Os programadores tendem a encaixar tudo o que é mais híbrido ou transversal em ciclos, como se ainda não houvesse enquadramento para uma coisa que os artistas andam a fazer há décadas. Esta bienal vem mesmo para dizer que isto não é excepcional, é uma prática corrente.” 

Actividade contínua

Precisamente para deixar que a ideia se entranhe, John Romão imaginou uma bienal de seis semanas, com a ajuda do programador de música da ZDB, Sérgio Hydalgo, e a consultoria adicional de Pedro Lapa, João Laia e Romeo Castelucci: “Uma programação que se instala, de que se fala, mas sem impelir a um consumo desenfreado de festival, de três espectáculos ou mais por dia. Até porque o público-alvo é um público jovem, não necessariamente especializado e com poder de compra limitado – vamos ter passes gerais e bilhetes individuais acessíveis e também muitos eventos de entrada gratuita.”

 Ao longo desse período, cerca de 30 artistas (de quatro continentes) circularão por outros tantos espaços, apresentando “objectos inéditos e únicos, a maior parte dos quais em estreia mundial” que, espera o programador, possam activar “uma reflexão sobre a missão de cada uma das instituições parceiras”, em muitos casos “definida há décadas”. Cita o exemplo do Museu Nacional de Arte Antiga, onde um encenador estrangeiro, ainda por anunciar, vai estrear uma instalação que interromperá o circuito expositivo habitual, e do São Carlos, que receberá um artista especialmente desafiador, verdadeira ave rara das artes performativas europeias, num happening que incluirá parte da orquestra. Será, adianta, uma performance duracional, oportunidade para trazer “alguma informalidade” ao único teatro de ópera do país, com o público a poder “sair para ir fumar um cigarro e voltar a entrar”.

Tal como Chaignaud, os restantes artistas residentes estrearão peças tanto em 2017 como em 2018, ano off da bienal – Salomé Lamas, por exemplo, inaugurará nesta primeira edição “uma relação com a música e com a cena” que se tornará mais assumida no projecto a desenvolver um ano depois com a Gulbenkian. A BoCA tratará também da difusão nacional e internacional das suas encomendas – o Centro Cultural Vila Flor, de Guimarães, o Theatro Circo, de Braga, e o Cineteatro Avenida, de Castelo Branco, já são co-produtores confirmados, e, lá fora, a bienal está a trabalhar também com o Palais de Tokyo, em Paris, e o Thêatre Garonne, de Toulouse.

De resto, a BoCA estará em actividade permanente ao longo do ano com um programa educativo – o primeiro módulo de seis meses, Música Pobre, começa em Novembro em Castelo Branco (será replicado depois em escolas superiores de música de Lisboa e Porto), com formação a cargo da coreógrafa Vera Mantero, do músico e artista visual Pedro Tudela, do antropólogo Paulo Raposo e do engenheiro acústico José Luís Bento Coelho.

Com a montagem financeira ainda a aguardar algumas peças que podem vir a ser decisivas, a bienal está pronta a abrir em 2017 uma excepção que quer ver tornar-se regra tão rapidamente quanto possível. Ou pelo menos uma excepção menos e menos minoritária, diz John Romão: “A BoCA começa em Lisboa e no Porto mas não é descabido que venha a tornar-se nacional. Talvez em 2019 já possamos estar a trabalhar numa terceira cidade.”

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