Jane Goodall: “Há um hiato entre o cérebro inteligente e o coração humano”

A primatóloga britânica Jane Goodall acredita que só podemos salvar os chimpanzés se cuidarmos das pessoas que os rodeiam.

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A famosa primatóloga britânica tem 82 anos e continua a trabalhar na defesa dos primatas Luis Ramos/Arquivo

Cabelos brancos apanhados num rabo-de-cavalo e um chimpanzé ao colo, pendurado no seu pescoço. É a imagem que vem à cabeça quando se fala da famosa primatóloga britânica Jane Goodall. Com 82 anos, a investigadora e activista que fundou o Instituto Jane Goodall e que é mensageira da paz das Nações Unidas continua imparável. Enquanto, no Reino Unido, prepara uma longa viagem pelos EUA, Jane Goodall respondeu por email a algumas questões do PÚBLICO.

Acredita que corremos um risco real de ter um dia um planeta sem primatas?
Infelizmente, a menos que que façamos um esforço muito maior, sim, é uma possibilidade. Todos os grandes primatas estão ameaçados. O habitat dos orangotangos,  por exemplo, está a ser destruído sobretudo por causa do cultivo do óleo de palma. Em África, os primatas estão ameaçados pela perda do seu habitat e pela exploração madeireira e mineira, assim como pelo comércio de carne de animais selvagens para consumo. O gorila oriental e o bonobo estão em grande perigo e algumas populações de chimpanzés também. Os primatas são caçados para serem comidos ou comercializados vivos - os primatas pequeninos são vendidos como animais de estimação ou entretenimento. As populações humanas ocupam cada vez mais o habitat dos primatas, causando desflorestação e espalhando doenças. Os primatas são tão parecidos connosco que eles podem facilmente apanhar as nossas doenças. Em alguns lugares, os primatas já foram extintos. 

Pode dizer-nos qual foi o maior erro cometido por humanos que nos trouxe até a esta situação?
O estilo de vida ganancioso e materialista das classes ricas em todo o mundo é ambientalmente insustentável. A criação de situações de pobreza, que obriga às populações a cortar as últimas árvores para cultivar alimentos ou produzir carvão por absoluta necessidade, por uma questão de sobrevivência. E o aumento da população global. 

Como foi possível destruir tanto em tão pouco tempo?
Nós perdemos sabedoria. Nós já não perguntamos: "Quais serão as consequências deste acto nas gerações vindouras?" Em vez disso, nós perguntamos: "Como isto pode ajudar-me agora?" ou "Como isto vai afectar a próxima campanha política?" Por outras palavras, há um grande hiato entre o cérebro inteligente e o coração humano - o amor e a compaixão. Além disso, houve o aumento da população e a chegada de novas tecnologias que nos permitem destruir mais rapidamente o ambiente (embora, é claro, as tecnologias também possam ser utilizadas para viver com mais harmonia com a natureza). 

Qual seriam as consequências de perdemos esta voz no reino animal?
Cada vez que uma espécie desaparece, perdemos um fio da tapeçaria da vida, na qual todos os fios estão ligados. Mesmo a perda de uma espécie aparentemente insignificante pode levar ao colapso do ecossistema: aquela espécie pode ser o principal alimento de outra, que vai sofrer também, e assim por diante, até chegar aos humanos. Hoje, as abelhas estão ameaçadas em muitos lugares, se perdermos os nossos insectos polinizadores também perderemos muita da nossa comida. E se perdermos os chimpanzés, perdemos uma das principais espécies que distribuem pela floresta sementes de árvores frutíferas. Mas, acima de tudo, cada espécie é única e tem valor em si própria. O que dirão os nossos filhos e netos se permitirmos a extinção de espécies?

Sem os grandes primatas ficamos sem os nossos parentes mais próximos no reino animal e sobre os quais ainda temos tanto a aprender. Em Gombe [Tanzânia], onde os chimpanzés são estudados há quase 60 anos, estamos sempre a aprender coisas novas.   

O que se pode fazer?
Não há forma de salvar os chimpanzés a menos que consigamos melhorar as condições de vida das pessoas que rodeiam estes animais. Foi assim que o Instituto Jane Goodall começou o programa TACARE (ou Take Care, “cuidar”, numa tradução livre), recorrendo a uma pequena bolsa da União Europeia. Começámos a tornar os solos férteis [na região do Gombe] através da introdução de novas ideias de cultivo. Trabalhámos com as autoridades locais para melhorar escolas e centros de saúde. Houve ainda projectos de gestão de água, programas de microcrédito, bolsas escolares, planeamento familiar.

À volta do parque nacional foi feita uma região-tampão entre os chimpanzés e as pessoas. Parte da terra foi usada para formar caminhos entre comunidades isoladas. No Sul, onde ainda existe floresta prístina (mas que não está protegida), encontra-se a maioria dos 2000 chimpanzés da Tanzânia. (Cerca de cem em Gombe e 800 noutros parques nacionais.) Aqui o TACARE serviu também para proteger as florestas. 

Como é que cada um de nós pode ajudar?
É preciso pensar nas consequências das escolhas que fazemos todos os dias: o que compramos, comemos, vestimos. Onde foi feito? Resulta de trabalho infantil ou de maus tratos a animais? O produto é mesmo necessário? Cada dia que se vive tem um impacto. Também pode tornar-se membro do Instituto Jane Goodall ou de outro programa de conservação da natureza, fazendo doações ou como voluntário, ou pode encorajar as pessoas a participar no nosso movimento Roots & Shoots, que está activo em cem países [Portugal incluído]. Na verdade, estamos a criar a mudança todos os dias. 

Como está a correr o programa Roots & Shoots? 
O programa está agora activo em quase 100 países. Na sua maioria, o programa está nas escolas, mas também há grupos nos centros da natureza e nos jardins zoológicos. Há cerca de 150.000 grupos (uma escola pode ser um grupo) e cada um deles escolhe – dependendo das idades, do país, da cultura – três projectos para tornar o mundo um lugar melhor. Um dos projectos é para ajudar as pessoas, outro é para ajudar animais e o terceiro é para ajudar o ambiente. Os jovens discutem problemas, pensam em como podem fazer a diferença, arregaçam as mangas e agem. Temos grupos em Portugal. Este ano celebramos o 25.º aniversário. Na verdade, estamos a criar a mudança – todos os dias.  

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