Um juiz escutado num país de faz-de-conta

O recurso ao meio de obtenção de prova "escutas telefónicas" e meios análogos (desde logo, o correio electrónico) tem sido das matérias mais discutidas no processo penal português.

Em entrevista à SIC e de que o PÚBLICO deu nota na edição de 9/9/2016, o juiz Carlos Alexandre afirma que sente estar a ser alvo de escutas telefónicas (ilegais), o que, infelizmente, não pode provar. Num verdadeiro Estado de Direito, suspeitas como esta dariam lugar, de imediato, a um inquérito criminal, não se sabendo se tal aconteceu ou não. Se ainda não foi aberto, deveria sê-lo o mais rapidamente possível.

Recordamos todos que o ex-Procurador-Geral da República, Cons. Pinto Monteiro, havia afirmado algo idêntico, com pormenores rocambolescos e até com conselhos "domésticos" de como evitar ser escutado. Se a situação não fosse tão grave, quase seria anedóctica.

O recurso ao meio de obtenção de prova "escutas telefónicas" e meios análogos (desde logo, o correio electrónico) tem sido das matérias mais discutidas no processo penal português. O chamado "Processo Casa Pia" trouxe à luz do dia fragilidades assinaláveis neste domínio, no tocante às garantias de defesa dos arguidos. As acções encobertas, as actividades investigatórias da Autoridade Tributária, o medo do terrorismo, têm sido algumas das causas criadoras do ambiente favorável para que, no seu brilhante discurso de tomada de posse, Manuel da Costa Andrade, Presidente do Tribunal Constitucional, se fizesse eco qualificado dessas preocupações, como anteriormente havia sucedido em suas numerosas intervenções públicas.

Admitir que um magistrado seja escutado ilegalmente é comprometer os fundamentos do sistema de justiça e da democracia. É-o já quanto a um vulgar cidadão, mas em relação a alguém que está encarregue de "dizer o Direito", é o princípio da independência do poder judicial que sai ferido de morte. Pouco releva se o juiz diz ou escreve, através dos meios de comunicação, coisas relevantes ou não para um concreto processo. Fulcral é que, aparentemente, o "catálogo de crimes" previsto no Código de Processo Penal, a especial fundamentação exigida para o despacho autorizador de um juiz de instrução e os cuidados com as formalidades das operações, em que existe um controlo periódico pelo Ministério Público e pelo juiz, parecem, em muitos casos, ser "letra morta". Falamos de escutas ilegais, realizadas não se sabe por quem e com que propósitos. Pode ser o do entorpecimento da acção da justiça, o silenciamento de um dado magistrado, a hegemonia do poder económico sob as instituições do Estado. Qualquer deles é implosivo da forma de organização social em que escolhemos viver.

O silêncio ensurdecedor que declarações como esta causam na comunidade pátria é eloquente. Existiu algum tipo de tomada de posição por parte da PGR ou do Conselho Superior da Magistratura, para citar somente alguns entes públicos que deveriam velar por que situações como esta não ocorressem? Pergunta-se, todavia, como podem controlar-se escutas ilegais? Apenas com redobrada investigação e com estritos critérios de admissibilidade e valoração da prova assim obtida. A luta contra o terrorismo e a criminalidade altamente organizada não pode servir para, sob o seu manto respeitável, se transformar cada um de nós em um actor do universo orwelliano. Assim, como já defendemos sucessivas vezes, o recurso às escutas telefónicas e meios análogos só deveria ser admitido, para além dos demais previstos no catálogo, quanto a crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos e não aos actuais 3. É esse limite que corresponde à média e grave criminalidade, à qual devem estar reservados os métodos de obtenção de prova mais vulneradores de direitos fundamentais.

Defender isto não significa que nos oponhamos a que os serviços de informação da República não sejam autorizados, ao invés do que hoje sucede, a realizar, em condições expressas na lei e quando em causa estejam interesses de protecção da segurança nacional, escutas telefónicas válidas. É quase ridículo que um serviço de inteligência não o possa fazer num mundo dominado pelas tecnologias da informação. Ou que eventualmente se veja na contingência de a tal recorrer sem cobertura legal. Isto sim, é o completo descrédito do sistema, pelo que propugnaria, ao contrário de iniciativa legislativa apresentada pelo PCP e em curso no Parlamento, pela admissibilidade de esses serviços – e não só a Polícia Judiciária – o fazerem, ponto é que quanto a um catálogo fechado de delitos, com fiscalização judicial (quando possível) ou do próprio órgão fiscalizador dos serviços de informação e segurança.

A administração da justiça deve sempre merecer a atenção máxima de todos os cidadãos, já que uma justiça condicionada contém em si o gérmen larvar de uma qualquer ditadura de interesses obscuros.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Consultor da Abreu Advogados

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