Cristina Branco: fica-lhe bem a leveza

É o disco mais gaiteiro da carreira de Cristina Branco, que se mune de novos compositores como Jorge Cruz, Luís Severo ou Filho da Mãe. Fala ao Ípsion da liberdade de arriscar.

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Durante algum tempo, pensou “fazer um disco a partir dos ritmos tradicionais portugueses”. Mas percebeu que não podia ser apenas isso FOTO: Pedro Ferreira

Estávamos no final da refeição quando Cristina Branco resumiu não só este período mas talvez toda a sua carreira ao dizer, depois de levar a chávena de chá à boca: “Gosto de poder arriscar”. Deu mais um golo e especificou: “De ter a liberdade de poder arriscar”.

Não deixa de ser caricato que o tenha dito a finalizar a mais pacata das entrevistas, em que em vez de perguntas inquisitórias e respostas arriscadas houve uma simples conversa com talheres pelo meio.

Menina, o seu mais recente disco de originais, serviu de mote mas acabámos por voltar àqueles primeiros discos polémicos, que punham em causa a estrutura tradicional do fado, discos que, por vezes, ela não gosta de reouvir. Não houve guião: falou-se da sua condição de mãe na estrada ou da mania de inventar canções nas digressões, canções que não grava e depois esquece.

Arriscar foi o que ela fez umas semanas antes, quando subiu ao palco do festival Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos, e em vez de se apoiar em temas conhecidos do público atirou-se às canções de Menina. Mesmo quem não sabia do que se tratava percebeu de imediato que havia ali disco novo e disco diferente: mais intenso, mais directo, mais lúdico, mais brincalhão, menos pesado, menos trágico.

“É o disco que acaba de vez com a tragédia na carreira dela”, dizia-nos um colaborador próximo de Cristina, e não estava longe de estar certo. Menina não representa nenhum corte em termos de instrumentação (tudo ainda se baseia em guitarra portuguesa, baixo, piano), mas sim na forma de a usar. Há algo de gaiteiro, descomplexado nestas canções. Não obrigatoriamente feliz à força, não são canções que riem compulsivamente – antes canções que depois de chorar encolhem os ombros e seguem com a vida.

“Eu sei que há um fundo de verdade na ideia de que este é um disco mais leve”, explicava Cristina, antes mesmo da refeição chegar. “Se bem que eu sempre tive o intuito de ser leve e variada, mas este é um disco muito lúdico”, concedia – e, vá, era difícil não o fazer.

Bastava pararmos no piano de Saber aqui estar (escrita por Pedro da Silva Martins e Luís José Martins) para o notarmos, já que podia ter sido uma brincadeira composta por uma criança. O refrão, contudo, é danado: dá vontade de repetir a canção vez após vez.

A sensação repete-se seja com Boatos (escrita por Jorge Cruz) ou com E às vezes dou por mim, composta pelo guitarrista Filho da Mãe. Esta última é possuída por alguma tristeza mas não por uma tragédia irresolúvel – e musicalmente é mais lúdica do que a tradicional canção de Cristina Branco, se pudermos usar a palavra tradicional com ela.

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FOTO: Pedro Ferreira

Mudar

Um dos melhores exemplos dessa mudança na música de Cristina é A meio do caminho, tema escrito por Peixe (música) e Nuno Prata (letra). Há uma intensidade na voz que, mesmo quando se desce aos acordes menores ou quando Cristina canta “Tenho medo”, não permite que se caia na auto-comiseração. O ritmo – saltitante, por oposição ao arrastado do fado tradicional que, valha a verdade, é habilidade que ela não pratica – também impede que se rebole na tristeza compulsiva.

Mas que deu na cabeça desta moça que não raro era densa como tudo? Há duas respostas que se podem aventar e a primeira sai-lhe da boca sem que ela note, quando diz “Queria falar não de mim, mas queria um disco feminino, de quem está bem consigo”.

Uma boa parte da conversa foi passada a falar de filhos (habilidade que todos os presentes na refeição praticaram). A última vez que a entrevistei ela acabara de ser mãe da sua filha mais nova – que estava ali, no ovinho, acompanhando a mãe numa série de entrevistas.

Cristina saca do smartphone e eis a garota ali, com quatro anos, lindíssima. Este gesto tem uma resposta universal em todo o mundo ocidental: os restantes pais sacarem dos seus smartphones e todos trocarem galhardetes acerca dos seus pequenos. Quando vai em digressão, Cristina deixa o seu par de crias com o marido, mas às vezes têm de contratar uma ama, sempre a mesma. Não é a estrela que está ali a falar – é uma mulher simples, acessível, querida e claramente vivida.

Não tenho coragem de lhe perguntar se quem está de bem consigo é ela mesma e se quis celebrar isso. 

Mas quis celebrar qualquer coisa, “quis mudar qualquer coisa, isso foi deliberado”. Durante algum tempo, talvez um ano, ela pensou “fazer um disco a partir dos ritmos tradicionais portugueses, mas rapidamente [percebeu] que [o novo disco] não poderia ser só isso”. Tento imaginar um disco inteiro de Cristina Branco com adufes e reco-recos, ao ritmo de chulas, enquanto trinco uma bela chamuça.

Foi nessa altura, quando a primeira hipótese que tinha pensado ruiu, que ela e os seus colaboradores próximos pensaram em pedir canções à miudagem nova que anda por aí a fazer canções. Convém não exagerar: Jorge Cruz (dos Diabo na Cruz) tem uns 40 anos e Peixe e Nuno Prata hão-de andar pela mesma idade. Mas Filho da Mãe é mais novo e Luís Severo, apesar de já veterano, é um garoto.

“Conheci uma parte deles [os compositores] numa festa da agência”, conta Cristina, “os outros fui ouvindo ao longo dos tempos”. A maior surpresa que teve foi talvez Lula, o homem por trás dos Cachupa Psicadélica: “Sou super fãzoca”, diz, com um desprendimento caricato. “É um tipo muito fora, um ser extraordinário. Adorei conhecê-lo. Parece um catraio de 20 anos. O potencial que aquilo tem”.

Passamos um bocado a conversar sobre como Deus à, o tema escrito por Luís Gomes (o verdadeiro nome de Lula, da Cachupa), que ela não consegue imaginar a funcionar numa sala grande, foi transformado no que se ouve em disco. “Aquilo não tinha tempo, não tinha marcação, nenhum ritmo que pudéssemos imitar”, recorda Cristina. “Era só ele e uma guitarra: a canção deve ter-lhe aparecido e ele gravou e assim ficou. Tivemos de transcrever tudo para pauta e ouvir onde estava a canção”.

Entretanto, já demos a segunda resposta para a pergunta “Mas que deu na cabeça desta moça que não raro era densa como tudo?” A primeira era o seu bem-estar; a segunda era estes moços que ela foi buscar. Cristina não costuma encomendar uma dúzia de canções a desconhecidos mas desta vez achou que esse era o caminho a seguir. Pelo menos depois de ter desistido dos ritmos do folclore nacional.

“Queríamos puxar pelos tons menores mas sem carregar no negro e achei que os novos compositores tinham essa sensibilidade”. Ela não lhes perguntou se eles conheciam a música dela. A impressão que tem é que “eles foram olhar para o que eu fiz e encontrámo-nos a meio do caminho”. É aí – nesse encontro a meio do caminho – que entram os benefícios da escuta.

“Quando as canções surgem, escritas e cantadas pelos compositores”, explica Cristina, “elas não são isto que as pessoas ouvem quando colocam o disco a tocar. De modo que a base do disco acaba por ser a audição que fazes, porque tens de ouvir ali a melodia, tens de ouvir ali a canção que vais fazer”.

Acertar em cheio

Por um instante ela baixa a guarda e confessa que “às vezes as canções vêm com melodia de voz e algumas destas pessoas não são cantoras, de modo que tens uma grande canção muito mal cantada e precisas de ir à procura da melodia”. Diz isto e depois ri-se. Não está a menosprezar o que lhe chega, antes pelo contrário.

Acabou por ter sorte: “Houve canções que acabaram por não entrar” mas nas escolhidas “não tive de alterar nada nas palavras: eles perceberam tudo o que eu queria e acertaram em cheio”. Ao ponto de um disco que andou dois anos a ser pensado, ter acabado por ser feito em apenas seis meses. As vozes foram gravadas em dois dias e meio; no total, com os instrumentos, demoraram cinco.

E quando finalmente o pôs a rodar percebeu que fizera aquilo a que se propunha: um disco de acordes menores mas sem negrume excessivo, “mais uniforme, mais leve, capaz de chegar a mais gente, mais fácil para a maior parte das pessoas de interiorizar”.

Pode não parecer mas está muito longe da Cristina Branco dos primeiros discos, quando o negócio era desconstruir o fado. Na altura muita gente se zangou com essa jovem desconhecida, que não tinha passado no fado (nem fazia propriamente fado).

 “Nos primeiros discos”, recorda, “tinha muita ousadia e muita inocência. Se não tivesse não teria arriscado como arrisquei. É preciso um certo desconhecimento para fazer aquilo – porque naquela altura não era fácil fazer um disco de não-fado”. A dada altura ela diz que por esses dias “não era uma cantora, era uma futura jornalista”. Nem sequer se sentia bem quando lhe pediam para cantar. E hoje? Ela pára por uns instantes e diz: “Hoje acho que já sou”.

O mais provável é que o tenha sido sempre. Só que agora pode sê-lo também com um sorriso e muita leveza. Fica bem, essa leveza, a Cristina Branco. Fica-lhe muito bem.

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