Brian Jonestown Massacre: esta luz que nunca se apaga

São uma das grandes bandas de culto do rock’n’roll. Nasceram nuns anos 1990 pouco sintonizados com os sonhos, pesadelos e iconografia 60s em que primeiro se inspiraram. Quando se preparam para a estreia em Portugal, no Reverence Valada, têm aura de lendas vivas. Anton Newcombe fala ao Ípsilon.

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São uma das grandes bandas de culto do rock’n’roll. Nasceram nuns anos 1990 pouco sintonizados com os sonhos, pesadelos e iconografia dos anos 60s em que se inspiraram. Preparam-se para a estreia em Portugal, no Reverence Valada, esta sexta-feira, e têm aura de lendas vivas. Anton Newcombe fala ao Ípsilon.

Não era exactamente a altura para aquela música. Estávamos nos anos 1990 e o rock, na sua faceta mais visível, assistia ao ocaso das cabeleiras amparadas em laca reinantes nos 1980s, enquanto os riffs Black Sabbath feitos angústia existencial do grunge, tudo verdade e nenhum artifício - explicava-se então - preparavam-se para lhes tomar o lugar. Enquanto isso, em Los Angeles, Anton Newcombe dava início à revolução, dirá o próprio. Chamou-lhes Brian Jonestown Massacre. No mesmo nome, reunia-se a mitologia e o elevado teor de coolness do anjo trágico Brian Jones, guitarrista dos Rolling Stones, e o suicídio colectivo de 1978 em Jonestown, nome dado ao espaço, na Guiana, que albergava um culto místico-agrícola-religioso liderado por Jim Jones – a união de uma força criativa e inspiradora, mas amaldiçoada, com a simples loucura mortífera é, de resto, todo um programa.

Ao longo dos anos 1990, os Brian Jonestown Massacre foram realmente um culto, ao sabor dos humores e da exigência de Newcombe. Terão passado pela banda mais de 50 músicos, incluindo, por exemplo, um futuro fundador dos Black Rebel Motorcycle Club. Editaram álbum atrás de álbum, chegando aos três por ano (grande ano foi 1996, com Take it from the ManTheir Satanic Majesties’ Second Request e Thank God For Mental Illness). E, enquanto gravavam música onde se misturavam e reconfiguravam os Stones, os Byrds, os My Bloody Valentine, os Beatles, os heróis indies ingleses e os heróis garage americanos, foram construindo uma lenda de banda fascinante, imprevisível, caótica, romântica, rebelde e autodestrutiva.

Lenda que seria exponencialmente amplificada com a chegada do extraordinário Dig!, documentário de Ondi Timoner, estreado em 2004, que segue o percurso gloriosamente errático da banda em paralelo à dos Dandy Warhols, melhores amigos tornados Némesis (hoje são amigos outra vez).

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Um logo com Brian Jones, guitarrista dos Roling Stones, que inspirou o nome da banda

A banda que actuará no segundo dia do Reverence Valada, esta sexta-feira (23h20), é um dos grandes destaques de um festival que, no que ao rock’n’roll, stoner, punk, pós-punk, shoegaze e afiliados, os tem em dose generosa: pela vila ribatejana passarão Fat White Family, The Raveonettes, Silver Apples, Dead Meadow, The Damned ou Killing Joke. Anton Newcombe, o mitómano romântico de outrora (e irascível por demasiado romantismo), é hoje um habitante de Berlim.

Pai de dois filhos, continua a editar com regularidade imbatível e a sonhar mil novos projectos. Também continua homem de resposta pronta e língua afiada. A conversa com o Ípsilon começou pela estreia da banda em Portugal e logo passou para as rotinas da vida na estrada. “Tens de perceber como são brutais os dias de uma digressão. Queres que comece pelo fim do dia ou pelo início?”, perguntou a lenda. Começámos, como se impõe, pelo princípio.

Como é afinal um dia de digressão dos Brian Jonestown Massacre? Acabou de acordar. Que se segue?
Acordo no beliche do autocarro e, aconteça o que acontecer, tenho que arranjar café imediatamente. Depois, entramos numa cidade e temos que esperar que toda a gente acorde. Por essa altura devem ser umas 7 ou 9 da manhã. Às 10h, ou 11h, ou às duas da tarde, deixam-nos entrar na sala onde vamos tocar. Começam a trazer o equipamento e é mais uma hora para montar. Quando essa parte está terminada, já devem ser umas quatro. Mais uma hora para o teste de som e depois descontrair um pouco até à abertura das portas e chegar a hora de tocar. Tocamos e tocamos durante muito tempo. Depois do concerto, porque não consigo comer antes, como o sushi ou sashimi que tento sempre encomendar algures. Se tiver algum amigo dessa cidade, bebo um chá no autocarro com ele ou ela. Em seguida, vou dormir quando o autocarro já está em andamento. E o dia seguinte é exactamente igual.

As digressões são, portanto, uma espécie de Tempos Modernos do rock’n’roll, mas com um par de horas pelo meio, as do concerto, que compensam todo o tédio.
Quando estou perante o público trata-se de uma partilha, uma experiência folk: eu e a audiência a partilharmos um momento. “A vida é uma porra muito difícil, mas diverti-me com os meus amigos e com o concerto desta banda. Era uma boa banda”. Em concerto, a música nasce e vive perante o público, com todas as suas imperfeições. Mas os discos não têm que ser como a merda dos Radiohead. São arte conceptual e têm que captar a imaginação, como no teatro. Não precisam de ser o “World of Warcraft” e dar-te a volta à cabeça com imagens geradas por computador. Podem ter como cenário apenas um fundo preto. Quando consegues capturar o momento, percebes que não é necessário nada mais.

Editou Revelation em 2014 e no ano seguinte Musique de Film Imaginé, uma homenagem à nouvelle vague. Já este ano criou a banda-sonora de Moon Dogs, filme escocês de Philip John [realizador de Downton Abbey]. Atravessa um momento particularmente produtivo. E diversificado.
Não vou mentir. O mundo não presta, mas tenho imaginação e a qualidade de vida que me trazem as pessoas que sinto necessidade de ter à minha volta. Fui hoje passear ao parque com o meu filho, que tem três anos. Foi a primeira vez que ele guiou um cão com uma trela. Gosto muito destas coisas simples. Estes são bons tempos para mim. Mas para fazer música não preciso de nada. Não preciso de estar triste para compor uma canção triste, não preciso de estar feliz para compor uma canção feliz. Tenho toda uma vida de experiências e estou acordado. Limito-me a explorar. Acima de tudo, não quero fingir que sou um adolescente. Esta obsessão com a juventude… Quero lá saber se o meu cabelo cair todo. Isto não é como os Rolling Stones. Porque é que eles ainda tocam? É que não soam nada satisfeitos [“satisfaction”, no original]. O que quero é soar real e passar um sentimento verdadeiro. É esse o sonho. Não percebo mesmo aqueles gajos. Não é pelo dinheiro, certamente. Talvez seja aquela excitação de tocar perante o público. Com o Neil Young é diferente. Sobe ao palco e toca música, como eles, mas toca a sério. Os concertos são verdadeiros. Já o Bob Dylan, e eu adoro o Bob Dylan e adoro o lugar em que está agora, aparece e rosna a todas as canções. O Bob Dylan não quer saber de nada.

Nos anos 1990, com o rock’n’roll que faziam, onde cabiam sons e iconografia dos anos 1960, shoegaze ou folk psicadélica, os Brian Jonestown Massacre pareciam habitar um lugar bastante isolado. Hoje em dia já se sente mais acompanhado?
Tivemos que lutar contra toda a gente. As outras bandas arrancavam os nossos posters das paredes e os clubes não nos deixavam tocar, por isso tínhamos que alugar templos maçónicos e organizar festas em caves. Lutámos para poder tocar. E porque é que provocámos essas reacções? Porque éramos revolucionários. Era tão estranho. A MTV passava os Goo Goo Dolls mil vezes por dia, eles ou qualquer outra banda dessas, e não havia espaço para mais nada que existisse no mundo. Não havia certamente espaço para nada cantado em português. Pois bem, onde é que estão hoje os Goo Goo Dolls? Porque é que aquilo era tão importante? Não interessam a ninguém. E está a voltar a ser assim, mas agora em ciclos cada vez mais curtos. O pior de tudo é chamarem-lhe cultura contemporânea. Só é contemporânea porque não consegue representar o amanhã.

Mas agora tem conseguido contornar as dificuldades de outrora. A emergência da internet e as transformações na indústria discográfica permitem-lhe chegar rapidamente a toda a gente.
Quando outros músicos se vêm queixar que não se faz dinheiro na indústria da música, não me ponho a contar-lhes os meus sucessos. Faço o meu trabalho. Tenho o meu estúdio e tenho a minha casa. Tento fazer as coisas acontecer e tento ser uma pessoa melhor enquanto vou amadurecendo. Sempre soube que a maioria das pessoas, se pudesse saltar a parte de tocar música e chegar à namorada loura e ao convite para a festa com muita cocaína, prefeririam não tocar. Mas ninguém imaginou que chegaríamos a isto. É tão fora de tudo esta cultura da celebridade. A Kim Kardashian fode um gajo qualquer e filma-se com um filtro de visão nocturna e de repente é uma celebridade. Que merda é esta? Toda a gente sabe o nome dela no mundo inteiro. Até tira fotografias com a Hillary Clinton, que será a próxima presidente dos Estados Unidos – e que vai iniciar uma guerra. É tão importante que a porra da Hillary tem que aparecer ao lado dela… É neste momento que tenho que parar e gritar “que se foda o mundo” e “que se foda a guerra” para voltarmos a falar de música. Portanto, quando tocarmos em Portugal vai ser de loucos.

Vão tocar num festival onde passarão, e passaram em edições anteriores, bandas que, sabendo-o ou não, são descendentes daquilo que os Brian Jonestown Massacre mostraram no passado. Coração no rock’n’roll, mas criado a partir da colagem ou reconstrução de estilos e estéticas diferentes.
Quando o Paul McCartney canta “will you still love me / will you still need me / when I’m 64”, está a desconstruir o jazz para chás dançantes dos anos 1930, que provavelmente ouviu através da sua mãe. Não passava de um oldie. Tudo isto é só música. Quando penso nestas bandas actuais… Gosto dos [ingleses] The Soundcarriers, adoro os [franceses] The Limiñanas. Todos juntos: “Sim aos Limiñanas!”. E estou a tentar trabalhar com a [francesa] Melody [Prochet], dos Melody’s Echo Chamber. Quero fazer grandes coisas com a minha vida. É isso que digo a mim mesmo todos os dias.

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Ao longo dos anos 1990, os Brian Jonestown Massacre foram realmente um culto, ao sabor dos humores e da exigência de Newcombe. Terão passado pela banda mais de 50 músicos

Mudou-se há alguns anos para Berlim, cidade muito diferente da Los Angeles em que nasceu e que tão bem conhecia. O que lhe trouxe a mudança?
Sou de Newport Beach, Califórnia. Fica mesmo na praia e é muito branca, uma merda de lugar racista para gente rica. Em Berlim ninguém me incomoda. Posso ter um aspecto muito estranho com as minhas grandes patilhas grisalhas, mas sou apenas um gajo bizarro a andar pela rua. Ninguém me chateia e gosto dessa invisibilidade. Além disso, adoro o clima do norte e as culturas do norte. Muita gente quer ir viver para Espanha e muitos alemães vão lá aproveitar as praias e o calor. Eu adoro o Inverno, a chuva. De onde venho, todos os dias são perfeitos. A temperatura é sempre a mesma e até podes nadar na praia no Natal! Mas antes de viver em Berlim vivia em Manhattan. Posso viver em qualquer lugar do planeta, mas agora tenho uma boa vida aqui. Até começar a guerra com a Rússia, parece-me um óptimo lugar para estar.

Neste momento da sua vida, e no tempo que vivemos, que temas deve um músico abordar obrigatoriamente?
Amor, claro. E o desejo de fazer arte verdadeira. Não quero dizer às pessoas o que significa arte verdadeira. Sei o que significa para mim. Sei que tem que funcionar como uma máquina mágica que transforma os maus sentimentos em algo positivo. Um verme que come a merda toda e limpa o espírito. Por outro lado, não quero fazer da música nada de pessoal. Hoje em dia existem todas estas merdas pop em que a música soa toda ao mesmo e, aparentemente, há nelas muito de pessoal. [improvisa uma letra sobre uma melodia vagamente Katy Perry] I’m getting paid for all this / I’m at the club with my friends every night / Whoo!Nunca sei do que raio é que estão a falar.

Nos últimos anos tem viajado bastante mundo fora. Além disso, é um melómano interessado na música de outras paragens e um curioso pelos instrumentos aí utilizados. Tudo isso contamina a música que cria? De que forma?
Claro que contamina, ou não gravaria em francês. E eu nem sequer falo francês, mas isso não me interessa. Assim que encontrar alguém que cante maravilhosamente e que tenha algo a dizer em português também gravarei em português como a minha oferenda à cultura. Uma das coisas de que gosto mesmo é do Sérgio Mendes Trio e nunca precisei de saber a língua. Assim que o ouvi em miúdo, percebi que era música impressionante. A Gal Costa do início? Impressionante. As palavras são cantadas de forma apaixonada e matematicamente perfeitas na relação com o ritmo. Quero sempre fazer algo maravilhoso para acrescentar à cultura, porque esse é o meu dom e é isso que faz com que valha a pena viver a vida. Tudo atravessa a minha música porque o que está por trás é o espírito, a verdadeira humanidade. É todo o espectro das emoções humanas que se manifestam, esperamos, sob mil formas.

Na última década foram regressando à banda alguns fundadores, como Joel Gion, o icónico homem da pandeireta, o guitarrista Matt Hollywood ou o baterista tornado guitarrista Ricky Maymi. Foi importante voltar a tê-los a seu lado?
O Matt já não está comigo, está a fazer a sua própria cena [integra os The Rebel Drones]. O problema é que ele só queria foder adolescentes. Quando eu tinha 13 anos e andava a dormir com miúdas de 13 anos, era natural. Quando tens 40 anos e andas a tentar engatar miúdas de 17 depois de um concerto, isso não está nada bem. Vão fazer o quê? Dormir no sofá do pai dela? Não quero coisas dessas à minha volta. É desrespeitoso. “Põe-te fino, pá! Assim não te quero no autocarro”. O curioso é que ele era virgem quando começámos a banda. Isso é que era engraçado nele, a escrever canções sobre minetes quando nunca tinha dormido com ninguém. Agora é simplesmente desconfortável.

E Joel?
Ter o Joel connosco é óptimo. Percebe a mecânica, percebe como funciona. Nós temos a nossa própria magia e por isso é que pedi para ele se juntar novamente. Assim eu posso estar no meu mundo a providenciar a música e ele pode ficar a olhar para toda a gente enquanto toda a gente olha para ele.

Tem hoje uma carreira estável e celebrada, é pai de dois filhos, vive da sua música em Berlim, em paz. O jovem Anton Newcombe da década de 1990 sentir-se-ia feliz com este futuro que lhe estava reservado?
Falava disso com a minha mãe recentemente. Fiz a banda-sonora para o Moon Dogs, meteram-me num avião até Edimburgo para assistir à estreia no festival e “buum!”, melhor filme. No festival seguinte, também ganhou melhor filme. Quando contei à minha mãe, disse-lhe: “Lembras-te de todas as vezes que entraste em casa e me disseste para parar de tocar a merda do piano porque querias ver televisão? Vês como consigo sustentar a minha família sem nunca ter pedido dinheiro emprestado?” Ela respondeu-me: “Fico tão feliz por nunca teres parado e por não me teres dado ouvidos”. Mas sabes que mais? É uma vitória vazia. Não me faz sentir bem. Uma pessoa que não saiba realmente o que é a vida talvez se sentisse bem: “Vês? Eu bem te disse!” Mas a mim não me faz sentir nada bem. Pelo contrário.

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