Uma viagem a São Petersburgo

São Petersburgo tem só 300 anos, mas é um concentrado de história

A primeira vez que ouvi falar de S. Petersburgo foi nas Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett, onde o burgo é associado ao frio: “Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo — entende-se.” Pois eu não viajei à roda do meu quarto mas saí até à cidade russa.

Não encontrei o frio porque era Agosto. Encontrei, isso sim, a cidade que conhecia dos livros de História: a cidade de Pedro I, o Grande, o seu fundador em 1703 numa região pantanosa à entrada no Báltico, banhada pelo rio Neva, e de Catarina II, também a Grande, que içou a então capital da Rússia aos cumes da opulência. Quem já viu palácios, igrejas e museus nas capitais europeias não viu nada até ter visto São Petersburgo. Só palácios barrocos há mais de uma centena. Imperdíveis são o Palácio de Inverno dos czares (sede de um dos maiores museus do mundo, o Hermitage) e o Palácio de Verão (a uma meia hora do primeiro por hydrofoil). Foi ao Palácio de Inverno que o cruzador Aurora, que ainda por ali permanece, atirou os primeiros tiros da Revolução de Outubro, em 1917, vai fazer cem anos. Foi no Palácio de Verão que, em 1941, Hitler quis dar uma recepção, face à dificuldade em entrar na cidade, mas Estaline reagiu bombardeando o local. Está tudo reconstruído, brilha o ouro barroco nos salões e nas fontes.

O motorista de táxi que apanhei no aeroporto de Pulkova (perto de um histórico observatório astronómico que serviu de modelo ao Observatório da Ajuda) indicou-me até onde chegaram os blindados alemães. Agora está lá um enorme stand da Mercedes, pelo que comentou: “Sempre é melhor do que tanques”. O seu avô tinha combatido no cerco da cidade, que se prolongou por quase 900 dias, tendo tido a sorte de sobreviver ao contrário de dois milhões de russos, que pereceram mais de fome do que das bombas que caíam todos os dias, de manhã, à tarde e à noite. Ponto alto da defesa da cidade foi a interpretação, que se tornou símbolo da resistência russa, da Sétima Sinfonia de Dmitri Choskatovitch na Sala Grande da Filarmónica a 9 de Agosto de 1942. Isso não impediu que o compositor, natural da cidade, tivesse sido vítima da implacável censura estalinista. A cidade tem sido pródiga em artistas, mas estes nem sempre foram bem vistos: Paolo Troubetskoy, que fez uma estátua equestre de um dos últimos czares, respondeu assim quando mudou o regime: “Eu não sou político. Só fiz um animal em cima de outro.”

Há uma tradição sangrenta na política russa. Foi em Leninegrado, isto é, São Petersburgo, que Estaline mandou, em 1934, matar o seu número dois, o dirigente local Serguei Kirov, iniciando uma purga que dizimaria uma boa parte dos dirigentes comunistas. Já tinha sido em São Petersburgo, na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, que Pedro I mandou torturar até à morte o seu próprio filho, Alexei, suspeito de conspiração. Foi aí que Catarina II, alemã de nascimento, esteve por trás do golpe de estado, perpetrado por um seu amante, contra o marido, Pedro III, neto de Pedro I (o czar deposto morreria meses depois na prisão), para reinar longos anos. Foi ainda aí que o filho de Catarina, Paulo I, foi assassinado, num forte que mandou construir porque se sentia inseguro no Palácio de Inverno. A Catedral de São Pedro e São Paulo, no centro da fortaleza, é o panteão dos czares, onde estão Pedro e Paulo, dois dos primeiros Romanov assassinados. Mas os regicídios foram mais. No sítio onde foi baleado Alexandre II ergue-se hoje a portentosa Igreja do Sangue Derramado. Não, os últimos Romanov, Nicolau II e a sua família, não foram mortos aqui pelos bolcheviques, mas estão sepultados desde 1998 no panteão, após funerais nacionais com a presença de Ieltsin. Foram todos santificados pela Igreja Ortodoxa.

São Petersburgo tem só 300 anos, mas é um concentrado de história. Nas sinistras masmorras de São Pedro e São Paulo estiveram como presos políticos Dostoievski, Trotsky e Krotpokin. A porta do Neva ficou conhecida por “Porta da Morte” pois aí embarcavam os condenados a pena capital ou a trabalhos forçados na Sibéria. O primeiro português que esteve na capital imperial russa teve sorte madrasta: António Luís Vieira foi recrutado em Londres por Pedro o Grande, que fez dele capitão da sua guarda, mas, após a morte do monarca, acabou desterrado na Sibéria. Outro português na corte russa foi António Ribeiro Sanches, que salvou a jovem Catarina II de uma doença grave antes de ela ser coroada, e teve melhor sorte. Ainda no século das Luzes, D. João Carlos de Bragança visitou São Petersburgo, tendo merecido um poema encomiástico do escritor Aleksandr Sumarokov. Depois de se referir a Homero, Virgílio e Camões, o poeta diz que “as zonas quentes são propícias à vinda a este mundo de bons poetas”. Mas ele, nascido no frio, não se conformava: queria também enfileirar na galeria.

*Professor universitário (tcarlos@uc.pt)

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