Bloqueada

Este processo fez da Espanha, ao lado da Grécia, um caso de perda acentuada da representatividade dos dois partidos dominantes.

Campeã europeia do desemprego, a Espanha é o maior de entre os países do Sul da Europa submetidos a esta cura de empobrecimento, desigualdade, precarização e desesperança que concedeu aos portugueses, aos gregos e aos espanhóis um papel desgraçadamente especial na grande crise económica mundial. É por isto que sabíamos há muito que ela seria sempre um caso especial na crise dos sistemas de representação democrática. Como se explica que, depois de duas eleições consecutivas, se tenha chumbado a segunda tentativa de formação de um novo governo?

Depois do desastre eleitoral de dezembro passado (em que perdeu mais de um terço dos votos e, de partido maioritário, se viu reduzido a menos de 29% dos votos), o PP recuperou em junho uma pequena parte das perdas (33% dos votos), mas continuou a ter uma ampla maioria dos espanhóis contra ele. Ao assinar há dias um acordo com os Ciudadanos (um novo partido liberal-nacionalista anticatalão), o PP, depois de não mexer um dedo nos dois meses seguintes às eleiçõe, compôs um bloco parlamentar minoritário de 169 deputados, no qual se reveem apenas 46% dos eleitores. Com a constituição deste bloco, o PP procura agarrar-se ao poder e aos meios que este lhe tem fornecido para, entre outros aspetos, interferir num sistema judicial que, apesar de tudo, tem ajudado a revelar esquemas tão generalizados de corrupção que permitem descrever a Espanha como um caso semelhante ao da Itália dos anos 80 e 90, não longe de contextos latino-americanos. Quem lhe fornece agora uma muleta (ainda que numericamente insuficiente) são os Ciudadanos, os novos meninos bonitos das cúpulas empresariais, de quem se esperava que, aliando-se ao PP, branqueassem a corrupção onde ela se pratica, ou quando, aliando-se ao PSOE em março passado, o prendessem à continuação da austeridade e ao tabú da rejeição de qualquer consulta sobre um novo estatuto político da Catalunha (ou do País Basco).

A esquerda e os nacionalistas catalães e bascos dispõem de uma maioria parlamentar de 180 deputados que votaram na quarta-feira e ontem contra Rajoy e que representam os 52% de eleitores que votou no PSOE (22,7%) e na frente Unidos Podemos (que somou a Esquerda Unida ao Podemos, 21,1%), e que incluem 1,6 milhões de votos nacionalistas catalães e bascos que não tolerarão um governo da direita espanhola apostada em aproveitar a crise para recentralizar a gestão dos recursos. O bloqueio espanhol resulta do facto de esta frente negativa, que em junho renovou a maioria que já em dezembro obtivera entre os eleitores, não conseguir articular uma alternativa positiva de governo. Se o não consegue, tal se deve à reiterada recusa dos socialistas em tentar compor uma geringonça-à-espanhola.

Se em Portugal, o PS, com um terço dos votos, não poderia atrever-se a governar sem o apoio dos partidos que, à sua esquerda, lideraram a contestação social que foi decisiva para a derrota da direita, em Espanha, os socialistas, que não reúnem sequer o apoio de um quarto dos votos, não dispõem de espaço algum para criar uma alternativa ao PP se não se lançarem, com coragem, a discutir os dois maiores problemas com que os espanhóis se confrontam desde há mais de um século: a desigualdade social e o reconhecimento dos direitos próprios dos povos que compõem o Estado espanhol. A decisão da atual direção do PSOE em votar contra um governo do PP, tomada e mantida contra a vontade de Felipe González e de todos aqueles socialistas das portas giratórias entre Estado e grandes corporações económicas, se tem surpreendido pela sua persistência, já não alimenta qualquer ilusão em quem, à esquerda, na Catalunha e no País Basco, esperam do PSOE um sinal que permitisse abrir o caminho entusiasmante para aquilo que os próprios socialistas têm chamado (pelo menos até há meses) uma nova Transição Democrática.

Por detrás da retórica arrebatada de que a Espanha precisa urgentemente de um governo, que tem preenchido os discursos dos dois partidos que até agora dominavam o sistema político, o PP e o PSOE, o que se percebe não é mais do que um taticismo teimoso. Uma estratégia perversa de deixar que o sistema deixe de funcionar, esperando que os espanhóis, entre o bloqueio institucional e o regresso ao bipartidarismo que propiciou níveis inconcebíveis de corrupção e de repressão da contestação, prefiram esta segunda modalidade da democracia musculada que se construiu nos anos 70. Recusando-se a negociar com adversários políticos que PP e PSOE descrevem como separatistas e populistas (é a nova moda: todas as propostas de transformação essencial das sociedades são agora descritas como "populismo", da mesma forma como há 50 anos se lhes chamava "subversivas"), descritoscomo verdadeiros párias intocáveis aqueles que representam as forças da mudança, os dois partidos pretendem tapar com cimento a crise estrutural por que passa o sistema político espanhol.

Se não, veja-se. O PP reivindica o que acha ser o seu direito a governar por ter ganho as eleições - mas, depois de também as ter ganho em dezembro, Rajoy recusou submeter-se à aprovação de um Parlamento que, como agora ocorreu, o teria chumbado. Nessa altura, o líder socialista, Pedro Sánchez, para dizer que se esforçava em encontrar uma solução, negociou um acordo inútil com os Ciudadanos, com os quais não somava mais que um terço dos votos necessários, recusando-se, pelo contrário, a negociar à esquerda, com quem poderia constituir uma maioria. O PP votou contra. Realizadas novas eleições, e ficando tudo praticamente na mesma, foi a vez de Rajoy negociar com os mesmos Ciudadanos outro acordo inútil - e é, agora, a vez do PSOE votar contra. É legítimo deduzir que os dois pretendem que se repitam, pela terceira vez, eleições em dezembro.

Estes longos oito anos de crise social e económica foram aproveitados, quer pelo governo Zapatero (PSOE) na sua fase final (2008-11), quer pelo de Rajoy (PP, desde 2011), para tornar a Espanha um dos campeões das políticas austeritárias e precarizadoras da Comissão Europeia, do BCE e do FMI. Este processo fez da Espanha, ao lado da Grécia, um caso excecional de perda acentuada da representatividade dos dois partidos dominantes e, portanto, de esgotamento do sistema político. PSOE e PP reuniam o apoio de 84% dos votantes em 2008, um dos níveis recorde de bipolarização eleitoral. Em 2011, já só reuniam 73% e em dezembro de 2015 caíam para 51%. O facto de o PP e o PSOE terem, em junho passado, recuperado uma pequeníssima parte do que haviam perdido (reunindo agora 56% dos votos) parece estar a alimentar em cada um deles a convicção de que o bloqueio do sistema político, de que ambos são responsáveis, os ajudará a esvaziar os novos sujeitos políticos que emergiram neste período de crise (Unidos Podemos e Ciudadanos). E que do bloqueio reemerja, pujante, o passado. E, de novo, a desesperança.

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