Joana Rios: “O fado é como um veneno que se mete no sangue. É viciante”

Mergulhou jovem no mundo do jazz e gravou Ella Fitzgerald, mas o destino empurrou-a para o fado. E ela já não se vê a cantar outra coisa. Fado de Cada Um, o seu primeiro disco fadista, apresenta-o agora na Fnac.

Foto
Joana Rios fotografada para a capa do seu primeiro disco de fado, agora em fase de lançamento Pedro Peralta

Cantou bossa nova, jazz e foi parar ao fado. Joana Rios, nascida em Lisboa, na freguesia do Campo Grande, em 7 de Maio de 1976, iniciou-se na música por influência familiar. Mas ninguém, sobretudo ela, adivinharia os caminhos que lhes estavam reservados. “O meu pai teve aulas de viola do professor Duarte Costa. Por gosto, porque ele não é músico, é médico. Um dia, eu estava ali ao pé e pensei em inscrever-me também em viola. Porque já tocava qualquer coisinha de piano, desde os 9 anos, e sempre tive um grande fascínio pelos instrumentos. Inscrevi-me, e à segunda aula já estava o professor a tocar e eu a cantar.” O professor falou-lhe nuns amigos que tinham uma banda – tudo gente muito mais velha do que ela, que tinha 15 ou 16 anos na altura – e andavam à procura de uma voz. “Eu lá fui, com a minha mãe, a achar aquilo uma loucura. Mas a verdade é que se me inscrevi naquelas aulas foi porque a minha mãe tinha lá em casa uma viola espanhola com um óptimo som. E ele dizia-me: ‘Tenho tanta pena que não toques viola, se tocas piano porque é que não tocas viola?’ Veio tudo daí.”

Joana foi e lá entrou na tal banda. “Chamava-se Os Gatos no Telhado. Tocavam bossa nova, que na altura estava muito em voga, alguns standards mais clássicos do jazz e até Zeca Afonso. Isto em festas, em bares. Depois evoluiu, saíram uns e entraram outros, começaram a compor originais.” Mas ela não ficou só por ali. Entrou para a Academia dos Amadores de Música, depois para o Conservatório e por fim para o Hot Clube. Um colega na academia tinha ido estudar para lá e ela resolveu seguir-lhe os passos. Até porque, diz ela, “com 18 anos ia praticamente todas as semanas ao Hot”: “Ia ouvir os músicos com quem mais tarde tive o prazer de cantar, o Bernardo Sassetti, os Moreiras, o Carlos Barretto, o Carlos Bica.” Por isso inscreveu-se. “Essa formação do jazz foi essencial para me construir como música, foi uma excelente escola de interpretação.” Até mesmo para o fado, no paralelo que tem com os blues. Mas isso viria mais tarde. Da época do Hot, ficou-lhe um disco (ao vivo) com temas de Ella Fitzgerald, ao qual se seguiram dois outros discos cantados em português, já com composições próprias. E acabou por entrar num território mais indefinido. “As pessoas do jazz disseram logo: ‘esta deixou de cantar jazz’. E fui automaticamente desvinculada daquele mundo.”

"Uma coisa intensíssima”

Mas o fado já espreitava, no seu subconsciente, desde a infância. A par de Elis Regina, Ella Fitzgerald ou Maria Callas, Joana ouvia também, por influência familiar, Amália Rodrigues. Ou Fernando Maurício (“o meu pai era médico dele”). “A primeira vez que eu cantei o fado foi precisamente com o Fernando Maurício nos Ferreiras, a casa onde ele cantava e que hoje, infelizmente, está fechada. Eu devia ter uns 17 ou 18 anos e foi uma experiência muito intensa, muito forte. Quando se canta em inglês, como no jazz, é uma coisa; mas quando se canta em português é outra.” Fernando Maurício perguntou-lhe o que é que ela sabia cantar e ela lembrou-se do Povo que lavas no rio. “O que eu fui escolher! Acabei de cantar e parecia uma Maria Madalena a chorar. Fiquei uns três quartos de hora assim. Foi uma coisa intensíssima.” Depois, o fadista insistiu com o pai de Joana para que ela voltasse, sem êxito. “Fugi daquilo a sete pés. Tudo aquilo me parecia muito intenso, muito forte. O próprio ambiente da casa de fados era muito forte. Aquilo bateu-me fundo e a minha reacção foi proteger-me.” Até que um dia cedeu.

E mais uma vez com “culpas” do pai. Um dia, ele disse-lhe que ia ao Museu do Fado ter aulas de viola com o António Parreira. Joana achou estranho ele ter aulas de viola com um guitarrista, mas o pai retorquiu. “Vamos ver repertório, ele vai-me ensinar.” Claro que, um dia, por insistência do pai, ela também foi. E António Parreira pediu-lhe que cantasse qualquer coisa. “Pensei: onde é que eu já vi este filme? E disse-lhe: não sei nada, só vim aqui para ouvir o meu pai. Então, o António Parreira, com a sua paciência infinita, lá me ensinou o Fado do ciúme, da Amália. Aprendi-o, em cinco minutos.” No fim, ele pediu-lhe para voltar noutro dia. Mas Joana não voltou. E passou-se um ano.

Isso foi em 2012. Um dia, por acaso, ela voltou a acompanhar o pai ao Museu do Fado. Ao vê-la, o mestre guitarrista disse apenas: “Estou à sua espera há um ano.” “Fiquei para morrer, envergonhadíssima. Então prometi-lhe frequentar as aulas. Comecei em Outubro, a lá ir todas as semanas, e aquilo é como um veneno que se mete no sangue. É viciante. Nunca mais deixei de cantar fado nem me apeteceu cantar qualquer outra coisa. Encontrei uma felicidade a cantar fado que nunca tinha tido noutras músicas.”

A partir daí fez uma imersão intensa: nas casas de fado, a ouvir discos “até às quatro da manhã”, a ler e a escutar tudo a que pudesse deitar a mão. Conheceu fadistas, letristas, músicos. E daí nasceu o seu primeiro disco desta sua nova fase, Fado de Cada Um, com fados clássicos e originais, que funciona como o seu cartão-de-visita fadista. O disco tem Eurico Machado na guitarra portuguesa e Pedro Pinhal e Carlos Heitor da Fonseca na viola de fado. Mas nas apresentações que hoje começam nas Fnac, ao lado de Pedro Pinhal na viola de fado estará Bruno Mira na guitarra portuguesa. Fado de Cada Um (que teve estreia no Museu do Fado, em 23 de Junho) é primeiro apresentado na Fnac Colombo, esta sexta-feira, às 17 horas, seguindo-se Oeiras (dia 4), Almada (11), Cascais (18) e Alfragide (25), sempre à mesma hora.

Outros palcos virão, depois, para esta cantora que trouxe do jazz muita da alma que agora entregou por inteiro ao fado.

Sugerir correcção
Comentar